6. Anotações ao De Crepusculis

Frei Nicolau de Santa Maria, na Chronica da Ordem dos Conegos Regrantes do Patriarcha S. Agostinho, Parte II (Lisboa, 1668), p. 280, diz que fora D. Simão, cónego regrante de Santo Agostinho, quem ensinara a D. Henrique as letras humanas e o latim; dada a pouca fé que o cronista merece, a notícia deve sujeitar-se a caução.

— Nicolas Cleynaerts, aliás Beke (1493 [ou 1494] †  1542), o famoso humanista flamengo conhecido pelo nome alatinado de Nicolau Clenardo. Veio de Salamanca para Portugal em 1533, como pela primeira vez provou o Dr. M. Gonçalves Cerejeira, atual cardeal patriarca de Lisboa (O Renascimento em Portugal. Clenardo, I, Coimbra, 1917, pp. 41-45) e não em 1534, como universalmente se aceitava, especialmente contratado para ensinar o infante D. Henrique.

Informa Frei Nicolau de Santa Maria (eo. loc.), aliás com exatidão, que Clenardo ensinou ao infante o grego e o hebraico; e pelo passo da Epistola ad Christianos acima transcrito e pela carta a Martinus van der Voort (ou de Vorda), de 24 de Abril de 1534, datada de Évora, abaixo reproduzida parcialmente, temos por seguro que lhe ensinou também a filosofia (lógica) e muito provavelmente a teologia, como também admite o Dr. M. G. Cerejeira, eo. loc.: “Doceo fratrem Regis, eo salario, quod pluris duco quam canonicatum Antuerpiensem. Munus est parui admodum laboris. Adeo Principem stata quadam hora, docemus, aut suauiter confabulamur. Quanquam non quotidie: multas enim ferias habeo, primum diebus Dominicis et festis: deinde uix est hebdomada, quin unus et alter sit dies immunis, partim uenando, partim aliis de causis. Ego interim domi cano mihi et Musis. Quid enim facerem Theologus in uenatione? Nisi forte putas me practicum factum Theologum, et omissis quaestionibus 'An Deus est, si proposito per se nota', nunc caeperim uenari sacerdotia: praesertim cum istud facere soleant Theologici aulici. Non uenor quidem, et tamen mihi dormienti aliena cura plus hic propediem conferetur sacerdotiorum, quam unquam apud uos litibus perpetuis consegui potuerim.

“— Ergo, inquis, fies pluralis — Capiam omnia circumlocutiue, et incomplexe, pro uno simplici, et optimo sacerdotio. Quem enim fructum haberem ex studio Dialecticw, nisi re ipsa tractarem Dialecticam? — Ludis, inquies. — Imo serio tecum ago. Nam cum sint dum partes Dialecticm, altera quam Kpyrud)v uocant, hoc est iudiciariam, quam in libris Priorum tradit Aristoteles, altera Torcud), id est localis, quam doctissime persequitur octo libris Topicorum, uisum est mihi consultum, ut omissa Stoicorum parte, nempe syllogismorum, hos enim liii exacte et spinose tradebant, eam potius portionem amplectar qum est de inuentione, hoc est libros Topicorum, qui docent inuenire argumenta: et non ignoras sex ullimos libros nos Louanii uix legere. Sum igitur totus in ista Dialectica: faxit Deus, ut hic feliciter inueniamus medium, non in ponte asinorum, sed in thesauris Lusitanicis (sunt enim boi Dialectioi, tanquam thesauri, in quibus latent argumenta) quo possimus isthic apud uos tandem bonos facere syllogismos”. (Edição Roersch, ait., I, pp. 34-35).

Sem dúvida alguma, Clenardo conheceu e lidou, pelo menos em Évora, com Pedro Nunes; não obstante não se lhe refere nunca, o que, dada a abundância de alusões pessoais no epistolário clenardiano, gera a suspeita de que algo lhes quebrou ou esfriou as mútuas relações.

O contrato de Clenardo cessou em Novembro de 1538, saindo logo de Portugal para Granada; de facto, porém, em data que não podemos determinar exatamente, o seu magistério havia já terminado anteriormente.

Para maior desenvolvimento, ver especialmente V. Chauvin et A. Roersch, “Etude sur la mie et les travaux de Nicolas Clénard”, in Mémoires couronnés et autres Mémoires publiés par l'Académie Royale des Sciences, des Lettres et des Beaux-Arts de Belgique, collection in 8°, t. LX (Julho 1900 - Maio 1901); Dr. M. G. Cerejeira, O Humanismo em Portugal. Clenardo, 1 (2.a edição, Coimbra, 1926), e Correspondance de Nicolas Clénard, publicada por Alphonse Roersch, 3 vols. (Bruxelas, 1940 e 1941).

P. 5, 11. 22-28: Dicit ille (...) excogitaueram] Nestas linhas indica Pedro Nunes as matérias que ensinou ao infante D. Henrique, e cujo quadro constituía como que a atualização do quadriuium medieval e                subministrava, como disse o próprio Pedro Nunes na dedicatória do Tratado da Sphera (I, 3, 33-36), “aquelles principios que deue ter qualquer pessoa que em Cosmographia deseja saber algúa cousa”.        

Vejamos separadamente cada uma destas disciplinas.

1) Elementos de Aritmética e Geometria, de Euclides.

Não é crível que Pedro Mimes houvesse ensinado a D. Henrique todos os livros que constituem os Elementos, os quais podem agrupar-se em três partes: os primeiros VI, versando a geometria plana; os livros VII-X, consagrados às propriedades dos números e à teoria dos incomensuráveis; e os XI-XIII, que se ocupam de estereometria. Em tão vasta matéria é impossível determinar a seleção que Pedro Nunes nela fez para as suas lições; conjeturamos, no entanto, que teria começado com o Livro I, seguido aos Livros II e III, e insistido particularmente no V e VI, dedicados à teoria das proporções, pela respetiva importância teórica e prática.

Como é sabido, os Elementos de Euclides são constituídos por XIII livros; porém as edições que Pedro Nunes poderia ter utilizado abrangiam mais dois (XIV e XV), que a crítica provou não pertencerem a Euclides, sendo o XIV provavelmente de Hipsicle (c. 150 a.C.), e que o nosso cosmógrafo citava como sendo da autoria do geómetra grego (ver vol. I, p. 179, 1. 41).

Sirva de exemplo a edição Contenta. Evclidis Megarensis Geometricorum elemétorum libri XV. Campani Galli trãsalpini in eosdem cõmentariorum libri XV. Theonis Alexandrini Bartholomxo Zamberto Veneto interprete, in tredecim priores, commentariorum libri XIII. Hypsiclis Alexãdrini in duos posteriores, eodé Bartholamxo Zamberto Veneto interprete, Commétariorum libri II. Parisiis in officina Henrici Stephani e regione scholw Decretorum (1516, data da epístola dedicatória). Exemplar da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Para conhecimento das edições (e respetivos títulos) dos Elementos até à época de Pedro Nunes, consulte-se o “Saggio di una bibliografia Eualidea”, de Pietro Riccardi, nas Memorie della Reale Accademia delle Scienze dell' Istituto di Bologna, 4.a série, t. 8 (Bolonha, 1887) e 5.a série, t. I (Bolonha, 1889). Existe na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.

Apesar desta referência expressa a Euolides e da omissão a trabalhos seus, admitimos a hipótese de Pedro Nunes ter utilizado nas lições ao infante D. Henrique (e ao infante D. Luís), se é que o não escreveu expressamente com esse fim, o seu Libro de Algebra en aritmetica y geometria, impresso em Antuérpia em 1567, mas redigido antes de 1534, embora ulteriormente, pelo menos depois da publicação do De erratis Oronti Finae (1542), revisse e acrescentasse o primitivo texto.

Por agora, formulamos apenas a hipótese, que no volume próprio será exposta e fundamentada; entretanto, para justificação, transcreveremos, como argumento capital, os seguintes períodos da epístola dirigida por Pedro Nunes ao infante D. Henrique, e com a qual abre o Libro de Algebra: “Esta obra ha perto de XXX annos que foy per my composta, mas porque.despois fuy occupado em estudo de cosas muy differentes, e de mera especulação, posto que algumas vezes a reuisse, e conferisse com o que outros despois escreverão, a deixey de publicar ofegara, que deboxo do nome e tutela de V. A. a mando fora. E primeramente a escrevy em nossa lingoa Portuguesa, e assi a viro V. A. mas depois considerando que ho bem quanto mais comum e universal, tanto he mais exoellente, e porque a lingoa Castelhana he mais commum em toda Espanha que a nossa, para nella se over imprimir, porque nam careça della aquella nação tanto nossa vizinha, com a qual tanto communicamos, e tanta amizade temos”. Esta carta é datada de 1564; como o Libro se achava escrito trinta anos antes, segue-se que teria sido escrito nos anos em que Pedro Nunes ensinou o infante (1531-1533?). Por outro lado, porém, neste mesmo Libro, Parte II, cap. 4, refere-se ao seu De erratis..., o que prova que corrigiu o texto depois de 1542. Sirva de exemplo o seguinte passo: “porque la proporciõ de los numeras extremos es compuesta de ias proporciones de los intermedios, como por nos fue demonstrado en el libro de los yerros de Oroncio Fineo (...)”.


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Vamos corrigir esse problema