Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Sob o ponto de vista da cultura intelectual, isto é, da literatura, para empregar o termo adequado à época e ao sentido, mostra que

Gil Vicente não era hóspede na Teologia dogmática e escolástica, que seriava e encadeava logicamente os assuntos — mistério da Trindade, criação, pecado original, instituição dos sacramentos, Incarnação, etc. —, e que sabia empregar com propriedade o termo exato.

O saber teológico e bíblico era no seu tempo o saber mais prezado e divulgado, e ele o disse neste passo do Auto da História de Deus,

Agora vereis

o que por diversos doctores lereis

d'ab initio mundi até á ressureição.

Podia, porém, um curioso autodidata atrever-se a escrever um sermão com tão sólida estrutura teológica e toleraria a Corte que o recitasse quem não tivesse méritos pessoais e, de algum modo, a autoridade que o estudo confere?

Toda a gente no Portugal do seu tempo viveu com sinceridade a paixão moralizante e a intenção religiosa, — e mais do que ninguém a roda culta dedicada à Rainha Velha, D. Leonor, cujo paço deixou faam na “polícia cortesã daquele tempo, que foi a mais perfeita que ser podia”.

Não é, pois, o ímpeto moral e religioso que dá feição a esta obra; é a circunstância singular de Gil Vicente a ter vertido nos moldes consagrados da parenética medieval, tão habilmente que dos seus versos se desprende o sentimento de um crente, convicto de que só contam as virtudes que conduzem à salvação eterna, e o anelo de um pregador possuído da responsabilidade inerente ao magistério do púlpito.

A obra cujas ideias estruturais acabamos de analisar pode ser considerada como prédica e como monólogo dramático. Sob o primeiro aspeto é uma produção intencionalmente séria, construída com a técnica do sermão medieval; sob o segundo, é uma peça teatral de estrutura parenética não inteiramente isenta de intenção jocosa, dado que o prólogo associa, como vimos, a troça e a seriedade, quase em partes iguais.

A jocosidade é, no entanto, preliminar e como que acidental, se se não preferir dizer, talvez com mais propriedade, que ela brotou sem esforço da veia natural de Gil Vicente e representa literariamente a oferenda do Poeta ao cultivo de um género, que alguns escritores franceses haviam acreditado, ao qual o seu génio deu a expressão primorosa do Pranto de Maria Parda e se tornara como que inerente ao discorrer do leigo que imitava a prédica do eclesiástico. Ontem, como hoje, a imitação tende irresistivelmente para a paródia, tanto mais subtil e jocosa quanto mais vasto, ágil e penetrante for o saber de quem imita e a capacidade compreensiva de quem ouve.

Com os dois sermões que agora iremos considerar, a relação inverte-se: a jocosidade é o elemento dominante, e, consequentemente, a atitude mental reveste a forma de paródia, isto é, de imitação burlesca. Literariamente, estas duas peças assinalam na obra vicentina duas formas características do sermão jocoso (sermon joyeux), cuja expressão adquiriu em França singular realce e se tem traduzido entre nós, talvez com menos propriedade, por “sermão burlesco”.

A origem próxima destas paródias parece dever situar-se em França, onde frequentemente precediam a representação dos “mistérios” ocupando, de certo modo, o lugar que no sermão era devido à exortação piedosa. Pela forma e teor são diferentes do prólogo das “rappresentazioni” italianas e da loa dos autos espanhóis —, donde o problema árduo da razão do seu aparecimento na obra vicentina.

Como os sermões de intenção edificante, versam um tema e referem autoridades e textos bíblicos, não se coibindo até de utilizar f aceta-mente o sinal da cruz e as orações, designadamente a Ave-Maria. O assunto variava, naturalmente, com o engenho dos autores; não obstante, é possível agrupá-los em função dos temas dominantes, havendo-os distribuído Ëmile Picot em sermões sobre a vida de santos ou de personagens de facécia, sobre o amor, as mulheres e o casamento, sobre a bebedice, de assunto vário e de sandices.

O primeiro dos sermões jocosos de Gil Vicente pertence ao grupo dos sermões amatórios, ou talvez mais propriamente eróticos; o segundo, ao de tolices. Consideremo-los separadamente, como impõe a respetiva índole.

Ocorre o mais antigo na Farsa chamada Auto das Fadas, representada em 1511, como estabeleceu Braancamp Freire. É um episódio que pelos gracejos, remoques e alusões pessoais, deveria ter divertido o auditório palaciano — a Farsa foi representada na presença de D. Manuel, da rainha D. Maria, do príncipe, das infantas e cortesãos e só poderia ter sido consentido a quem tivesse alcançado o prestígio que dá. o talento servido pelo carácter.

Se Gil Vicente tivesse sido um homem que ao fazer rir a face deixava a sangrar o coração e sob a veladura das alusões encobrisse o punhal da intenção maliciosa e perversa, teria sido acaso o escritor áulico que foi? Criou sem dúvida desconfianças e inimizades, porque nunca trouxe vantagem a ninguém pensar e fazer pensar os outros em que a Importância não é tão importante como parece —, e daí, porventura, o véu de quase anonimato em que os contemporâneos deixaram envolto o seu nome e, sobretudo, a sua obra.

O sermão mostra, pois, que a Corte folgava de ver a cara com que os fidalgos e fidalgas de nomeada suportavam os ditos e gracejos do Poeta —, e mostra também que quando ele vertia o ridículo em molde oratório o seu pensamento se articulava sob a forma do sermão e obedecia às regras da Ars praedicandi.

Com efeito, o sermão, que é recitado por um frade evocado do inferno, começa por estabelecer o tema, adequado a quem em vida havia sido bom namorado: Amor vincit omnia.

Pertencem as palavras ao verso 69 da Écloga X de Virgílio e assinalam, como observou D. Carolina Michaëlis, a única citação clássica entre trezentas e tantas citações de latim litúrgico, constituindo, portanto, “todo o pecúlio clássico de Gil Vicente”.

Tê-la-ia, ao menos, o Poeta colhido diretamente na própria obra do Mantuano?

Não é crível, porque como observou a mesma insigne Mestra, pode pensar-se com algum fundamento que o foi buscar à vulgarização de Encina: todo lo vence el amor.

As palavras do tema deviam ser seguidas da respetiva fonte ou autoria. É o que aparentemente Gil Vicente faz com a ininteligível frase — Iam per elegatis, e que D. Carolina Michaëlis, a quem não ocorreu a dependência do pensamento vicentino em relação à técnica do sermão, interpretou em todo o caso de maneira que lhe é afim, ao perguntar dubitativamente se com tais palavras o Poeta quereria dizer: procurai vós em que capítulo e versículo?.

O problema, dada a índole do sermão, seria uma blasfémia; por isso o omite, passando o pregador imediatamente a expor o significado da “verba del tema”. Apresenta duas significações: a literal,

el amor vence a todas las cosas,

e a alegórica, que entremeia com a citação das autoridades de Virgílio e de Valério:

Escriviólas el gran poeta Vergilio;

guardaldas, serloras, que es muy gran alivio

 a quién del amor se siente vencer.

Porque son palabras de tanto mistério

que ciega o alumbra la humana razón.

 Despida la vida qualquier corazón

pues que vos teneis sobre amor imperio.

En muchos lugares lo escrive Valério

que vuestro poderio no es humanal,

mas una gran fuerza sobrenatural

que fuerza las fuerzas de nuestro hemisfério.


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