Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Ao tema segue-se o protema, cuja função é, como dissemos, a rogatória do auxílio divino. O franciscano João de Gales († 1285), cujos Breviloquium de virtutibus antiquorum principum atque philosophorum e Communiloquium ou Summa collectionum foram utilizados pelo menos no nosso século XV, definiu a função do protema, na sua Ars praedicandi, nos seguintes termos: Secundo oportet subjungere prothema, quod sic dictum est, guia est propter principale thema, et utrumque (scil. thema et prothema) debet esse ex de verbis Bibliae sumptum. Assumitur autem prothema, ut per ipsum fiat quedam via ad divinum auxilium impetrandum, implorandum, quod necessarium est propter sequencia Premittatur ergo prothema, ut divina gracia et sapiencia impetrentur; post hoc vero repetendum primum thema”.

Gil Vicente aplicou este preceito, pois após a indicação do tema e de se declarar

esteril de ciencia, de gracia hambriento,

e porque

no cumple ni quiero andar rodeando,

entrou logo no protema,

Pidiendo la gracia per comparaciones

aquella preciosa ab eterno criada,

subida en el cielo por nuestra avogada

 y procuradora de nuestros perdones,

exortando no final o auditório a que o acompanhasse na recitação da Ave Maria trobada:

Ave Maria ab initio creata

Gratia plena concepta y nacida

……………………….

………………………

Iesus, Maria, y sé tu nuestra avocata.

Invocada a Graça da Virgem Maria, o sermão entra propriamente no tema, começando pela declaração do sentido das palavras.

Como disse S. Boaventura, e as Ars praedicandi repetiam com termos mais ou menos sinónimos, “em todos os livros da Sagrada Escritura, além do sentido literal, que as palavras exprimem externamente, é possível conceber-se um tríplice sentido espiritual, a saber,  o alegórico, pelo qual se nos ensina o que se deve crer a respeito da divindade e humanidade de Cristo; o moral, pelo qual se nos ensina como se deve viver; o anagógico, pelo qual se nos ensina como se deve aderir a Deus”.

Gil Vicente apontou apenas o sentido literal, não aludindo aos demais:

En nuestro comum hablar per compas,

sin nadia quitar ni más ariadir,

quieren aquestas palavras decir,

ni quiero, quiero, es por demas.

Foi este, pois, o sentido que Gil Vicente atribuiu às palavras do tema — non volo, volo, et deficior, e não outro.

Custa a reconhecer que D. Carolina Michaëlis, enlevada pela “filosofia” que julgava encontrar no Sermão e que nem por sombra deve

ter passado pelo espírito de Gil Vicente, se não tivesse detido na consideração do sentido literal vicentino. Notou, antes de outrem, a incorrecção do non volo, em vez de nolo, dela deduzindo a ilação comprovativa de um Gil Vicente “latinista não-humanista”, mas o seu admirável bom-senso crítico como que se extraviou neste passo, ao escrever que “no que dizem os loucos há às vezes filosofia profunda. Gil Vicente achou-a em non volo. E eu tentei igualmente encontrá-la em não quero, quero; todavia desfaleço, que me parece ser o equivalente de: o espírito está pronto, mas a carne desfalece”. Ergueu a primeira “verba” do tema a assunto capital, quando, como já veremos, Gil Vicente compreendeu nela um conjunto de questões disputáveis que deliberadamente pôs de banda; por isso, foi muito mais objetivo Brito Rebelo ao ler aquilo que o tema realmente diz: “não quero, quero, e é escusado ou por demais”.

Estabelecido o sentido literal, segue-se a divisão do tema.

A Ars Cancionandi, de autor franciscano, preceitua a este propósito, no proémio: Fertur autem ejus (scil. praedicantis) studium maxime circa tria, scilicet circa divisiones, distinctiones et dilatationes sive progressus..Sed in primo, scilicet in dividendo, est attendenda proprietas, in distinguendo brevitas, in dilatando utilitas Sic itaque plerumque contingit, ut, dum est divisio propria, instruat; brevis distinctio delectet; dilatatio vero utilis flectat”.

Foi isto que Gil Vicente fez, pois começando por dividir o tema, acentuou e desenvolveu a seguir a ideia contida em cada uma das partes:

Mediante la gracia del Spiritu Santo,

tres partecitas haré del sermón,

y todas tres partes en declaración

de aqueste mi tema, del todo y del canto.

La primera parte será declarar

esto no quiero, que es lo que no quiero;

 y en la segunda que es lo que quiero,

 y muy brevecico, por no os enojar.

En la tercera habeis de notar

cuales son cosas que son por demas,

autorizadas por Sancto Tomas;

y esto acabado ireis reposar.

A invocação neste passo da autoridade de S. Tomás, sem dúvida o Aquitanense, obedeceu, como é crível, à conveniência da rima, que não propriamente ao preceito do desenvolvimento das ideias pela alegação de autoridades concordantes. Este preceito, que Gil Vicente aplicou mais tarde, designadamente na “pregação” inicial do Auto de Mofina Mendes, de forma burlesca, como adiante mostraremos, não ocorreu neste Sermão, que foi escrito com intenção moral, que não propriamente doutrinal.

Estabelecida a divisão das partes e a distinção das respetivas ideias, o Sermão passa a desenvolver cada uma delas de per si.

A primeira — não quero — explicita-a Gil Vicente indicando concisamente os assuntos de teologia dogmática e escolástica, de interpretação bíblica e outros que põe deliberadamente de lado. São as seguintes:

I — Dogma da Trindade:

No quiero deciros, ni nadie lo quiera,

Como Dios es ansí uno y trino.

O primeiro verso mostra com evidência a ortodoxia de Gil Vicente; e o segundo, a propriedade dos termos, dado o rigor com que sempre se procurou evitar a confusão de trino com triplo.

II — Do poder de Deus:

No quiero deciros su poder divino,

 que obra en si a que obra fuera.

A interpretação plausível destes versos é a que se firma na expressão obra en si, considerando-a como tradução do poder de Deus ad intra. Sendo assim, Gil Vicente tinha em vista a conceção De potentia Dei, para utilizar o título da primeira das Quaestiones disputatae de S. Tomás de Aquino. Distinguem os teólogos nesta matéria o poder de Deus ad intra do ad extra, a produção ad extra, isto é, a criação, a conservação e o milagre, e a atividade ad intra. Gil Vicente parece ter considerado apenas a atividade ad intra e a produção ad extra.

III— De Deus antes da Criação:

No quiero arguir que es lo que hacía

antes que el cielo y la tierra criase.

Ocorreu-nos inicialmente que a fonte desta “quaestio” poderia remontar à diferença entre criar e fazer exposta por Pedro Lombardo no Das sentenças, 1. II, d. I, 2: Quod haec verba scilicet agere et facere et huiusmodi, non dicuntur de Deo secundum eam rationem qua dicuntur de creaturis; porém, ulteriores associações de ideias levaram-nos ao convencimento de que a fonte é augustiniana, podendo filiar-se num dos seguintes passos:

a) No De Genesi contra Manichaeos, de Santo Agostinho (na linha grifada): Primum ergo librum Veteris Testamenti, qui inscribitur Genesis sic solent Manichaei reprehendere. Quod scriptum est, In principio fecit Deus coelum et terram, quaerunt, in quo principio, et dicunt: Si in principio aliquo temporis fecit Deus coelum et terram, quid agebat antequam faceret coelum et terram? et quid ei subito placuit facere, quod nunquam antea fecerat per tempora aeterna?”….


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Vamos corrigir esse problema