Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Após o protema começa o sermão.

O orador iniciava-o, dividindo o tema, distinguindo as ideias nele contidas e, por fim, desenvolvendo-as.

De harmonia com as regras da lógica, a divisão assentava na definição - quer dizer, o orador tinha de definir, ou mais exatamente, de estabelecer, o sentido implícito no tema. Isto feito, seguia-se-lhe a divisão, que podia ser intra, isto é, intrínseca e abstrata, normalmente praticada só perante auditórios ilustrados, e extra, isto é, assente em imagens, representações sensíveis, exempla, etc., e dirigida a auditórios populares isto é, de pessoas ignorantes.

Feita a divisão do tema, o orador passava a desenvolver as ideias nele contidas. Era nessa parte que o seu génio e a originalidade das ideias podiam manifestar-se com mais independência; não obstante, o preceituário discriminava oito modos principais de desenvolvimento que Gilson assim enumera: substituição das palavras do tema pela respetiva definição; descrição e explicação; divisão; argumentação, que podia fazer-se pela discussão do caso contrário, pelo juízo implícito do auditório e pelos exemplos; explanação escriturária e teológica, fazendo-se aquela pela citação de auctoritates; composição ou derivação a partir de uma raiz comum; explicação das metáforas da Escritura; interpretação simbólica; e correlação com o princípio da causalidade.

Cada um destes modos merece atenção própria; no entanto, para o nosso objetivo, que é o de simples e sumariamente introduzirmos o leitor no conhecimento do que pode auxiliar a compreensão dos sermões de Gil Vicente, há três que cumpre fazer sobressair: o recurso às “autoridades”, o emprego de “exemplos” e as digressões de sentido alegórico e simbólico.

A abundância de citações da Escritura e de opiniões e sentenças de padres e de teólogos consagrados nas escolas assinala um dos aspetos salientes do sermão medieval. Constituía uma prática coerente com a didática em uso, que sempre partia de um texto a glosar ou comentar, e que obedecia ao propósito de dar fundamento indisputável às verdades enunciadas e até mesmo a simples e triviais reflexões.

 “Os processos mais subtis e mais fantasistas de uma exegese perpetuamente alegorizante, escreve M. Davy, permitem ligar, um após outro, os elementos psicológicos e os desenvolvimentos literários do sermão a cada palavra, e até mesmo às sílabas, dos textos alegados. Estes textos não são, pois, como que o suporte ocasional do pensamento e da frase, porque constituem a armação interna e o desenvolvimento ativo de ambos”.

Chamavam-se “exemplos” (exempla) as historietas, apólogos, narrativas, parábolas, fábulas, etc., a que o pregador recorria para tornar mais acessível o ensinamento religioso ou moral que predicava. Como disse o franciscano Etienne de Bourbon (t 1260) no Tractatus de diversis materiis praedicabilibus, os exempla exercem uma ação benéfica no auditório: servem para evitar males vindouros, para detestar vícios, para dar confiança a desesperados, para humilhar presunçosos, para converter perversos, para levar à penitência, para consolar aflitos, para inflamar os corações no amor de Deus, etc..

De origem oriental e greco-latina, o “exemplo” tornou-se um processo narrativo e moralizante de frequentíssimo emprego em todos os géneros de literatura religiosa e didática até ao triunfo do humanismo e do novo estilo que a pregação adquiriu na Contra-Reforma.

Como escreveu o mais ilustre tratadista deste assunto, “os pregadores, cistercienses e beneditinos, membros das ordens mendicantes ou do clero secular, após a transformação do método de pregação, conferiram-lhe uma importância inteiramente nova na instrução religiosa e moral do povo cristão. No sermão, consignam-lhe um lugar especial e até dele fazem uma parte integrante. Pouco a pouco, reunem-nos em repositórios especiais e fixam-lhe definitivamente os diversos tipos, recolhendo no seu domínio, já avultado, tudo o que contém um fundo narrativo qualquer.

Com este fim, vão buscar as narrativas à antiguidade sagrada e profana, a escritos anteriores e contemporâneos, a tradições universais e locais, à vida quotidiana da sociedade clerical e leiga, e até mesmo à sua experiência pessoal”.

O exemplum proporcionava, pois, a maneira de tornar acessível a doutrina, mormente nos auditórios populares que não podiam seguir com facilidade a exposição de conceções abstratas nem o desenvolvimento de argumentações dialéticas.

Demais, o “exemplo” abria ainda a porta ao poder sem limites da transfiguração simbólica, cuja aplicação assinala também uma das características do sermão medieval.

O símbolo e a alegoria permitiam ao orador sugerir sentidos recônditos, estabelecer paralelos insuspeitados, revelar harmonias misteriosas, vivificar pela imaginação algumas palavras e doutrinas de aparência fria e inane.

Daí a frequentíssima aplicação deste recurso, que aliás quadrava admiravelmente ao sentir e ao anelo das almas.

Bastam estes sumaríssimos tópicos para mostrar que o sermão medieval foi uma composição que obedeceu a regras e preceitos, distante da prédica simples das primeiras gerações cristãs e das rajadas eloquentes do século XVII e dos que se lhe seguiram.

Sob certo aspeto, o engenho pessoal não foi tolhido; mas por grande ou pequena que fosse a margem livre concedida à originalidade, o orador não podia furtar-se à aplicação de uma “técnica” que dava à arte concionatória a configuração de uma peça moldada, recheada de citações da Escritura e de sentenças de “autoridades”, adornada aqui e além com o maravilhoso dos símbolos e entretecida com a digressão moralizante de alegorias e de “exemplos”.

Generalizada, como foi, a ars praedicandi à cristandade ocidental, não se isentaram da sua disciplina e preceituário.

Ignora-se-lhe a extensão e profundidade, porque a história da nossa parenética, assim medieval como moderna, é um dos assuntos ainda não tentados com a luz da disciplina crítica. Foi no entanto conhecida e praticada, bastando para prova a existência nas livrarias eclesiásticas das mais famosas artes praedicandi de Alain de Lille, de João de Gales, e de João de la Rochelle, de Sermonários, como a Summa Guyotina, (Sermones de tempore et de sanctis), de reportórios de textos e autoridades, como as Distinctiones ad praedicatores utiles, o Tractatus de diversis materiis praedicabilibus, ordinatis in septem partes secundum septem dona Spiritus Sancti, o Verbum abbreviatum, de Pedro Cantor, e de repositórios de “exemplos” como o Communiloquium (ou Summa Collectionum), e o Breviloquium de virtutibus antiquorum principum atque philosophorum, além de outros.

Gil Vicente conheceu perfeitamente a “técnica” que tais livros ensinavam, a par de outros de que não há notícia segura de haverem existido nas nossas livrarias medievais, e cuja influência, que é, no fundo, a da formação eclesiástica, atingiu, como em Espanha, as próprias formas da oratória secular. Ignoramos onde, como e em que Ars aprendeu a fazer um sermão, mas temos por sem dúvida que dominou a respetiva “técnica” com a destreza dos melhores pregadores, quer quando predica com intenção séria, quer quando a emprega jocosamente. A prova, clara e irrecusável, é dada pelo sermão que ele próprio “pregou” em Abrantes, em 1506, e nos que pôs na boca de um frade, na Farsa chamada Auto das Fadas, e na “pregação” inicial do Auto da Mofina Mendes.


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