Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Da antiguidade helénica cita: Homero, Hesíodo, Sócrates, Xenofonte, Arato, Platão, Aristóteles, Alexandre da Macedónia, Herédoto, Ptolomeu e Hermes.

É bem pequena a lista para a época em que Zurara escreve, mormente se lançarmos os olhos para a cultíssima Itália sua contemporânea, já alvoroçada com os primeiros apelos das humanidades greco-latinas; e mais pequena ainda se torna à análise atenta, pois na quase totalidade, à referência nominal não corresponde o real conhecimento da obra. Assim, de Homero (C, 119; G, 289), Arato (C, 17-7), Heródoto, Sócrates (C, 118; G, 79), Xenofonte (C, 140), legitimamente podemos supor que os conceitos que lhes atribui foram colhidos em qualquer livro seu familiar —, conquanto do último pareça referir a Ciropedia (... E Xenofonte comta, que Cyro o mayor...). Se esta conclusão é discutível, não o é, porém, de forma alguma quanto a Hermes.

Os textos em que o nome deste lendário personagem aparece citado merecem um momento de atenção.

São eles:

a) Crónica da Conquista de Guiné:

“Creo que seja ante a face daquelle Eterno Senhor, cujo centro, segundo diz Ermes, he em todo o lugar per modo infijndo, e a circonferencia nom he em alguú” (Cap. LXXIV).

b) Crónica da Tomada de Ceuta:

«... Senhor Deos em persoall ternario he sua essemçia em rroda escprita, cujo çemtro segundo diz Hermes, he em todo lugar, a circonferemça nom he em alguu….» (Cap. XCVI).

c) Crónica do Conde D. Pedro de Meneses:

«…Deos, que em si mesmo com eternal ordenança, em pessoal ternario sem desigualeza, e sua Essencia em toda sphera, cujo centro, segundo dizemos, he em todo lugar per modo infindo, e a circumferencia nom he em algum...” (P. I, cap. II).

O Visconde de Santarém, ao anotar aquele lugar da Crónica da Conquista de Guiné, pela primeira vez afirmou referir-se Zurara ao livro de Hermas “intitulado o Pastor”. E acrescentava para maior relevo: “Por esta passagem vemos que Azurara... não admitia a opinião de Gelasio, que o classificou entre os livros apocriphos”. Esta identificação, aceita depois por todos os autores que da erudição de Zurara ou da livraria de D. Afonso V se têm ocupado, foi recentemente desenvolvida pelo Sr. Esteves Pereira numa nota lida na Academia das Ciências de Lisboa. O insigne orientalista, investigando o passo do Pastor, fonte de Zurara, julga encontrá-lo na 1.a cláusula do mandamento I, cujo texto grego reproduz e assim traduz:

“Primeiro de tudo crê que Deus é um; que ele todas as cousas criou; e fez tudo do não ser para o ser; e todas as cousas compreende, e só ele não é compreendido”.

Afigura-se-lhe, porém, “evidente que a citação de Zurara não foi feita diretamente do texto grego ou da sua versão latina; mas de uma citação de escritor, para nós desconhecido, que substituiu as ideias expressas por aquelas palavras pela imagem do círculo, cujo centro está em toda a parte, e a circunferência não é em parte alguma”. Com o devido respeito, julgamos esta identificação insustentável.

As citações de Zurara, como o leitor facilmente verificará adiante, têm origens mais próximas e menos limpas para a nossa probidade literária de hoje, porque são, pura e simplesmente, um plágio do cap. XI, liv. VI do Trauctado da Uirtuosa Benfeyturia, do infante D. Pedro, manuscrito que certissimamente existia na livraria régia: “Deus em sy rneesmo com eternal ordenança em persoal ternario sem desigualeza, he sua essençia em Roda sferica, cuio centro segundo diz hermes, he em todo logar pero modo Infyndo, e a circonferença nom he em alguu”.

Parece-nos mesmo que Zurara não apreendeu o valor do texto: copiou-o, pelo efeito retórico, senão pelo prestígio das coisas que se não entendem. Se já Damião de Góis notava que “e todallas cousas q screueu” usou de “superflua abüdãcia, & copia de palauras poeticas, & metafóricas…”!

Esta verificação, porém, não explica a origem da citação, porque somente a desloca. “Citaria de facto D. Pedro (ou o seu confessor Fr. João Verba?) Hermas, ou Hermes, como em todos os lugares aparece escrito? Teria havido, como é tão frequente, lapsus calami da parte do copista?

Os factos levam-nos ao convencimento de que se trata não de Hermas, mas de Hermes Trimegisto. Só muito remotamente há entre os dois lugares acima transcritos relação, — tão remota que, se fosse no Pastor que D. Pedro (?) se inspirou, bem poderia dizer-se que fora original. A essência e o valor da citação residem na imagem do círculo, que se não compreende nem nos termos, nem nas ideias daquela cláusula do Pastor. Demais, este livro perdeu-se na tradição medieval, dizendo já S. Jerónimo (340? + 420) que “apud Latinos paene ignotus est”. Só no século XV (1430-31) é que, segundo as diligentes investigações de Sabbadini, reentrou no património culto pelo fervor renascente de Nicoli, descoberta que fez exultar de alegria Traversari, que o reputava perdido.

Ela é na verdade uma fórmula atribuída ora a Empédocles, ora a Helinando, mas na maioria das referências a Hermes Trimegisto, difundida na Idade Média (Gerson, S. Boaventura, Vicente de Beauvais), reproduzida ainda mais no Renascimento (Marsílio Ficino, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Symphorien Chorier, Margarida de Navarra, M.11e de Gournay, Rabelais) e que Pascal, talvez o último a empregá-la, imortalizou num passo dos Pensées.

Vê-se, assim, que esta comparação tem larga vida histórica. Filósofos e místicos, poetas e historiadores a empregaram como expressão simbólica da omnipresença e omnipotência divinas, e a respetiva explicação, em parte ao menos, quanto à ideia — Deus... é a sua essência em roda esférica — encontra-a o leitor português elegantemente explanada por Fr. Heitor Pinto:

“A linha circular he perfeita: porque se lhe não pode acrescentar nada. Esta razão dá Aristoteles na primeyro liuro do ceo no capitulo segundo. E a razão porque se lhe não pode accrescentar nada he, porque acaba, onde começa. Esta he a causa da perfeyçam do circulo. Pois quando a alma contempla o criador, & dahi da volta pela contemplaçam das creaturas, & torna a contemplaçam do criador, fica como linha circular, porque fazendo voltas pelas cousas criadas se torna & conuerte, a quê as criou. Começando a contemplar em Deos toma por meo as creaturas, porque como diz sam Paulo aos Romanos, as cousas inuisiveis de Deos, como saõ sua potencia, sabedoria & bondade, se entendem pelas cousas, que elle fez desta criaçam do müdo. E tornando das creaturas a Deos faz hum circulo marauilhoso, tomando a Deos por fim, a quem tomara por principio, & acabando onde começou. Este he o circulo Platonico de nossa alma, e o mouimento em torno da meditaçam”.

Se Zurara plagiou a Virtuosa Benfeitoria, o autor desta também não teve grandes canseiras para redigir aquela passagem.

Nem o Pimander, nem o Asclepius—, obras atribuídas ao suposto Hermes e publicadas pelo platonizante Marsílio Ficino (1433-1499), con-tém a fórmula. Abel Lefranc, como fonte dos citados versos de Margarida de Navarra indica a célebre obra de Marsílio Ficino intitulada Theologiae platonicae de Imortalitate animarum libro XVIII, e sobretudo Nicolau de Cusa (1401-1464) que no De docta ignorantia e no De ludo globi largamente desenvolve aqueles conceitos, — o que bem se compreende, não só pela sua atitude filosófica de demandar a coincidentia oppositorum, mas, e principalmente, como documentação da então renascente mística dos números, de origem neopitagórica, a que o Cusano deu particularíssimo relevo.


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