Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

De Pier Paolo Vergério (1370-1444), de Capodistria, cita na Crónica de Ceuta (p. 67), a par de Egídio Romano, para comprovar o arrebatamento dos mancebos, a “ensinamça dos moços fidallgos”, cuja citação torna a fazer três anos mais tarde, na Crónica de Guiné, a propósito da opinião de “que o splandor da grande cidade he gram parte de nobreza” (p. 184).

Trata-se manifestamente do De ingenuis moribus et liberalibus studiis adulescentiae, que foi escrita pelos anos de 1400 a 1402 para o príncipe Ubertino da Carrara, e pela forma como faz as citações não pode haver dúvida de que Zurara teve conhecimento direto deste famoso tratado pedagógico do pré-humanismo italiano. A brevidade das citações, feitas com o inveterado sentido moralizante, não permite avaliar a amplitude da influência do pensamento pedagógico de Vergério, nem tão-pouco é possível determinar com aproximação o caminho que o manuscrito seguiu na entrada em Portugal.

Tê-lo-ia trazido o infante D. Pedro no seu regresso ao reino, pois consta que conheceu pessoalmente Pier Vergério no seu passo por Hungria?  Teria vindo na bagagem literária de Mateus de Pisano, como hipoteticamente admitimos para os anteriormente referidos livros italianos? Teria sido adquirido em Roma por algum sacerdote português que na Cúria pontifícia houvesse conhecido Paolo Vergério no exercício do cargo de secretário do papa Inocêncio VII?

Fosse qual fosse a via de entrada do manuscrito latino, temos por sem dúvida que Zurara não citou o original de Vergério, mas a tradução que por mandado do infante D. Pedro, sendo regente, Vasco Fernandes e Lucena fez para doutrinar D. Afonso V, “porque em elle podesse conservar as boas ensinanças que pertencem à sua idade...».

A tradução de Lucena é mais um facto a juntar aos vários que declaram a preferência da gente culta portuguesa de Quatrocentos pelo Humanismo florentino, de que Vergério foi um dos representantes; e com ser único, isto é, não haver indício de entre nós terem sido lidos contemporaneamente os tratados de Leonardo Bruni (1422), De studiis et litteris, de Maffeo Vegio, De educatione liberorum et eorum claris moribus, e de Enea Silvio Piccolómini, De liberorum educatione, nem por isso deixa de ser testemunho relevante do sentido pedagógico que o fundador da dinastia de Avis introduziu e, sobretudo, os seus filhos desenvolveram com nobre sentido pessoal e nacional, e do interesse que se votava à educação da nobreza.

VIII) ESCRITORES E LIVROS ESPANHÓIS

Quantitativamente considerados, os livros de autoria espanhola estão escassamente representados na bibliografia que Zurara utilizou, mas um deles, a General Estoria, de Afonso o Sábio, que aliás nunca aparece expressamente citada, proporciona alguns elementos capitais relativamente ao assunto que nos ocupa.

São os seguintes os autores citados: D. Rodrigo de Toledo, Lucas de Tuy, marquês de Santilhana, e D. Juan Manuel. A tão pequeno rol que, como iremos ver, terá de ser reduzido no cômputo das leituras diretas, cumpre acrescentar uma obra em castelhano “dos feitos do Cide Ruy Dyaz” e, pelo menos, dois livros alfonsinos que o cronista não cita mas utilizou. Comecemos pelas citações expressas.

D. Rodrigo (Ximenes de Rada) é citado na Crón. de Guiné (p. 93) em termos que à primeira vista parecem denotar a leitura direta da História Gótica do arcebispo e historiógrafo toledano “screve o arcebispo dom Rodrigo de Tolledo, e assy Josepho no livro das antiguidades dos Judeus, e ainda Gualtero, com outros autores que fallarom das geerações de Noe depois do saimento da arca”. A crítica das fontes, porém, mostra, como notou o Dr. Duarte Leite, que é nos livros II e III da General Estoria que “se acham dispersos os materiais com que foi tecida a parte do cap. XVI da Crónica que começa em “depois do deluuyo lançou Noe sobre seu filho Caym” e termina em “saimento da arca”. De facto, no cap. 12 do livro II se conta da maldição de Cam — e não Caym, como está no manuscrito parisino — por seu pai Noé, e nos seguintes se diz da descendência deste patriarca, sendo então citados Josefo e Gualtero; e nos 2.° e seguintes se expõem as ideias do arcebispo de Toledo D. Rodrigo”.

Não ocorrendo outra citação do nome do arcebispo toledano nas demais crónicas de Zurara é legítimo concluir-se que o cronista não consultou diretamente a História Gótica. É, pois, um autor a eliminar das fontes histórico-literárias de Zurara.

Lucas de Tuy, citado unicamente na Crónica de Ceuta (p. 10) tudo indica ter sido também autor não lido por Zurara. A citação ocorre neste passo: “Por que ella [Cepta] foi primeiro de gentios como dito he, e depoys foy conuertida aa fee de nosso Senhor Iehsu Christo, na qual durou ata o tempo que a o conde Juliam entregou aos mouros quando por vingança delRey Dom Rodrigo primeiramente os mouros passarom em Espanha segundo conta Santo Isid[o]ro, e mestre Pedro e dom Lucas de Tuy”.

Como se vê, a abonação é feita para comprovar um acontecimento de todos sabido, mas o facto de citar incorretamente, tal como na General Estoria, o nome de Santo Isidoro de Sevilha, e a circunstância de não referir o arcebispo D. Rodrigo, cuja obra é no fundo uma crónica gótica e de citar “Mestre Pedro”, sob cujo nome não corre qualquer história da Península, dos godos ou dos mouros, são indícios de que Zurara deu largas neste passo às suas reminiscências da leitura da Crónica General de España, senão também da General Estoria, onde mestre Pedro é citado — e a propósito — a cada passo.

“Mestre Pedro” parece dever identificar-se, quanto mais não seja por exclusão de partes, com Pedro Comestor, e sendo assim, a associação aos dois autores espanhóis do autor da Historia scholastica — onde não há, nem podia haver, dado o assunto de que se ocupa, qualquer referência ao grande tema da perdição de Espanha pela invasão árabe — parece impor a opinião de que Zurara fez citações de cor e de segunda mão.

Como D. Rodrigo de Toledo, o Tudense teria sido também um autor cujo Chronicon mundi vira referido e não lera.

Na ocupação de Alcácer por D. Duarte de Meneses houve uma ocasião em que os Portugueses tiveram de lutar também com a escassez de víveres. Os mouros vieram ao conhecimento do facto, que qualquer cronista relataria com simplicidade mas que a tendência retorizante e moralista de Zurara levou a uma glosa, que, com ser breve, corrobora o seu gosto pela poesia didática: “nom foi pequena gloria pera aquelles infieis, especialmente pera os principaes; ca quanto cada hum mais tinha, tanto mais temia, ca como disse aquelle docto Marques de Santilhana em huns proverbios que fez, Quem reserva al temido de temer?” (D, p. 133).

A citação é manifestamente direta, como aliás comprova a respetiva verificação, pois reporta-se à segunda estância do cap. I (De amor é temor) dos Provérbios:

Quién reservará al temido

De temer,

Sin discrepcion é saber

 Non ha perdido?

A citação inculca que Zurara não foi inteiramente alheio ao encanto da poesia, mas testemunha acima de tudo a influência conceptual da obra do insigne literato, que a D. Afonso V dirigiu um autêntico doctrinal de príncipes, que outra coisa não são as Coplas al muy exçellente é muy virtuoso seflor Don Alfonso, rey de Portugal.

Como a citação dos Provérbios, de Santilhana, é igualmente direta a do Conde Lucanor, ou Livro de Patrónio de Don Juan Manuel (C, 95), a cujo exemplário foi buscar o “exempro” da andorinha (Enxemplo VI).


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