Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Esta distinção, algo subtil e especiosa para hoje, teve-a presente, pelo menos quando escreveu a Crónica de Guiné e era o cronista da Crónica Geral do Reino, como se vê do seguinte passo:

“Antre estas cousas ficam outras muytas de rezoada grandeza, de que se outrem podya contentar, que nom fosse da excellencia daqueste, as quaaes leixo sob sillencio por nom afastar minha scriptura do que primeiro promety; nom porem, que de todo as queira callar, porque na cronica geral do regno as entendo de tocar cada húa em seu proprio lugar” (Cap. V).

Por estes dizeres, podia falar da Crónica Geral como de uma obra pessoal, como aliás falou noutro passo da mesma Crónica de Guiné; mas se se atender ao título e à discriminação entre crónica geral e crónica particular de feitos ou de indivíduos, ou por outras palavras, à existência de uma obra que os cronistas tinham por encargo continuar e cuja redação não se confundia com a elaboração das Crónicas particulares, a Crónica Geral parece ter sido uma obra em cujas laudas se apagava a personalidade literária para dar lugar o registo do arquivista.

Se esta maneira de ver é conjetural não o são em menor grau as que se propuserem acerca do início, da composição e do conteúdo da Crónica Geral, bem como acerca da relação desta com a Coronica de Portugal cujo manuscrito existia na livraria de D. Duarte.

 

Teve a Crónica Geral início após a nomeação de Fernão Lopes em 19 de Março de 1434 para “poer em coronyca as estorias dos Reys que antygamente em portugal forom”, ou existia já anteriormente?

Era constituída exclusivamente pela menção ou relato de acontecimentos da história portuguesa, começando porventura com o fundador da primeira dinastia?

Formava-a a versão do todo ou parte da Cronica General de España, continuada com independência a partir do nosso primeiro monarca, como dá a sugerir o título da publicação que o Dr. A. Nunes de Carvalho deixou interrompida em 1863: Historia Geral de Hespanha composta em castelhano por el-rey de Leão e Castella D. Affonso o Sabio, trasladada em portuguez por el-rey D. Diniz ou por seu mandado, e continuada na parte que diz respeito a Portugal até ao anno de 1455 no reinado de D. Affonso V.°?

Levaria longe a análise destes pontos, desviando-nos do nosso assunto — e estamos em dizer de outros problemas mais condizentes com as nossas preocupações — pela forçosa e demorada indagação e confronto de numerosas páginas de manuscritos; por isso, passaremos à segunda das alusões a escritos de cujos autores Zurara não soube ou não quis dar os nomes. Respeita, como dissemos, à esposa de D. Dinis e ocorre no seguinte passo da Crónica da Tomada de Ceuta: “E muitas estorias ha hi de muitos e gramdes primcipes, porque Deos fez muitos millagres, assy como sse acha daquella samta Rainha Dona Isabell, que foy molher delRey Dom Denis, que jaz em Samta Clara de Coymbra, aa quall foy reuellado o dia da sua morte. e delRey Dom Pedro, que seemdo partido desta vida, per boom espaço tornou a sua alma outra vez aa carne pera confessar huü soo peccado, sem cuja penitemcia nom podia rreceber bem auemturada gloria” (Cap. 44, p. 136).

A identificação é fácil: trata-se da biografia escrita muito provavelmente no século XIV e que Fr. Francisco Brandão publicou pela primeira vez em 1672, em apêndice à Monarchia Lusitana, sexta parte, com o título Relaçam da vida da gloriosa Rainha Santa Isabel, e mais recentemente, o Dr. José Joaquim Nunes, em 1921, no Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, vol. XIII, com o título de Vida e Milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal.

Finalmente, cumpre ainda atender ao terceiro grupo, constituído, como dissemos, por livros que Zurara utilizou mas não citou. Figuram à cabeça, como é óbvio, os originais que plagiou.

Seguindo a ordem das indagações anteriormente expostas, apura-se em primeiro lugar que o cronista teve presente os escritos saídos da pena do infante D. Pedro e dos que este promoveu ou alentou, a saber: a Virtuosa Benfeyturia; o Livro dos Ofícios de Marco Tullio Ciceram o qual tornou em linguagem o infante D. Pedro Duque de Coimbra; e possivelmente o Livro de Velhice de Tullio, que o Dr. Vasco Fernandes de Lucena tornou de latim em linguagem para o senhor infante D. Pedro.

É possível que Zurara tivesse utilizado outros escritos de Lucena, assim originais como traduzidos. O que apurámos, é já de si suficiente para mostrar que o cronista utilizara escritos saídos diretamente da pena de D. Pedro ou passados ao papel por seu estímulo.

REMATE

A presente indagação foi conduzida quase sempre em sentido horizontal donde a impossibilidade de juízos em profundidade acerca da estrutura mental, dos métodos, do saber e dos ideais de Zurara.

Iniciada em 1921 com o objetivo de apurar as fontes de algumas ideias filosóficas e científicas vigentes entre nós na época do cronista, interrompida pouco depois por outras preocupações, terminamo-la agora, um pouco à sobreposse, volvidos muitos anos e numa altura em que nos ocupam problemas de outra ordem, com intenção mais pedagógica que bibliográfica ou histórica.

É que sentimos ser oportuno evidenciar que a Razão não muda como o camaleão com a aparência dos objetos que lhe são presentes e, daí, consequentemente, o carácter científico da atividade investigadora não resultar de propriedades inerentes a certos objetos ou factos, mas do sentido de exatidão com que eles, sejam quais forem, são considerados e examinados. O espírito científico é um e sempre o mesmo, quer procure explicar os fenómenos da Natureza, que nos são dados, quer procure compreender os produtos da Cultura, que são criados pelo Homem e por ele acrescentados ao mundo natural.

Só esta atitude mental permite que venha a constituir-se em bases sólidas a compreensão e, em certos limites, a explicação da índole própria da Cultura Portuguesa, cuja interpretação global não será possível sem o esclarecimento prévio de numerosíssimos problemas de objeto claramente definido e de âmbito restrito.

A retomada da presente indagação obedeceu mais a esta intenção programática do que ao propósito explicativo; por isso não comporta, como acima dissemos, conclusões precisas e rigorosas. Admite, porém, algumas observações relativas à significação histórico-cultural da obra de Zurara. São principalmente as seguintes:

a) As suas Crónicas não exprimem a formação de quem aplicou a juventude no estudo das artes sermocinales ou se preparou discente-mente para a vida sacerdotal. A sua cultura é essencialmente leiga e mostra sinais de haver sido adquirida autodidaticamente, notadamente na variedade algo dispersiva dos conhecimentos, na curiosidade com que dirigiu o olhar para a alvorada do pré-humanismo, na predominância da atitude retorizante em detrimento da lógica (ou polemizante), que era a da tradição escolar. Por isso, se nos afigura exato o juízo de Mateus de Pisano no De bello Septensi (1460): [Zurara] dum maturae jam aetatis esset et nullam litteram didicisset adeo scientiae cupiditate flagravit, quod confestim effectum est ut bonus Grammaticus, Astrologus et magnus Historiographus evasisset.

Bom gramático, distinto astrólogo e grande historiador, tais parecem ser, com efeito, os predicados intelectuais de Zurara.

Gramático, foi-o sem dúvida, se por tal se entender não o grammaticus escolar e escolástico da tradição docente de tabulistas, donatistas e alexandristas, mas o prosador de posse de vasto vocabulário, capaz de o animar com a vibração da sensibilidade e até de o entumecer com o inchaço declamatório. Todas as suas páginas proclamam estes dotes, que o singularizam entre os escritores coetâneos: se o infante D. Pedro lhe foi superior na penetração da inteligência, na estruturação lógica do que lhe saía da pena, mais pensado que sentido, e na propriedade do vocabulário conceptual; se D. Duarte o excedeu na finura da análise introspetiva e na riqueza do vocabulário ético, que nunca esbanjou e sempre empregou com apreciável sentido de concretização e de densidade representativa, Zurara a ambos levou a palma na imaginação evocativa, na sinceridade com que admirava ações e sentimentos, na sensibilidade para o heroico e para o cavalheiresco, na expressão verbal e eloquente.


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