Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

El Conde Lucanor, ou Livro de Patrónio, foi muito lido entre nós, citando-o o Livro da Montaria (1. I, XIII) e Fernão Lopes, na Crónica de D. João I (Parte I, c. 41). O rei D. Duarte contava-o na sua livraria. É possível que tivessem concorrido para a divulgação a circunstância de Don Juan Manuel (1282-1348) ter sido sogro de D. Pedro I e a curiosidade por quem tão corajoso se mostrara no propósito de humilhar a casa real de Castela, pela ação e pela pena, como nas páginas do Libro de las armas; no entanto, qualquer que haja sido o apreço pela pessoa do pai de D. Constança e pelas suas atividades anti-castelhanas, o valor da famosa coletânea de apólogos e historietas era de per si atrativo e tão condizente com a técnica de pregadores e de prosadores didáticos que não é necessário recorrer a considerações extrínsecas para explicar a fortuna que El Conde Lucanor alcançou nos literatos da Corte portuguesa.

A referência ao livro “dos feitos do Cide Ruy Dyaz” ocorre no cap. I da Crón. de Guiné (p. 4) num passo que na secção imediata transcreveremos e do qual baste agora acentuar que é feita para documentar a existência de biografias, que, independentemente das crónicas gerais que todos os reinos possuem, têm por fim a narração de feitos notáveis “de que se com razom deve fazer apartada scriptura”.

O visconde de Santarém admitiu por provável que o cronista tivesse em mente o Cantar de mio Cid, dado que “na época de Zurara não havia uma crónica dos feitos do Cid” (G, 4, nota 2). A citação na Virtuosa Benfeitoria do «uirtuoso Caualleiro Cide ruy dias que era muy graado e liberal en tanto que nunca prendeo Rey nem senhor, nem outro homem que o nom soltasse sem rendiçom” (L. II, cap. VII) mais parece inspirada na Crónica Geral, que a Virtuosa Benfeitoria também cita, do que no Cantar, o que aliás não exclui a hipótese da existência de um manuscrito do poema na livraria real ou na de um dos infantes onde Zurara o poderia ter lido; não obstante, o teor da alusão, de evidente carácter monográfico, isto é, independente da Cronica General, faz pensar numa obra em prosa, do tipo da Crónica do Condestabre, à qual Zurara aliás se refere imediatamente a seguir. Sendo assim, teria tido em vista a Crónica Particular del Cid, que Menéndez Pidal julga ser “sólo un trozo” da Crónica de Castilla, ou, sobretudo, a Historia Roderici de autor anónimo e que o mesmo insigne erudito e Mestre considera um “evangelho da fidelidade e do esforço heroico”.

No decurso desta inquirição referimo-nos por vezes a escritos alfonsinos que Zurara conheceu e utilizou sem lhes fazer referência expressa. Figura à cabeça a General Estoria, que na intenção de Afonso X, o Sábio, devia ser a narração da história do Mundo desde a Criação até ao seu reinado e de cujo texto D. Duarte possuiu um apógrafo na sua livraria.

Zurara prendeu-se destas páginas, ou talvez mais propriamente da técnica historiográfica e do saber enciclopédico que elas espelham; por isso, se à Virtuosa Benfeitoria foi buscar ideias gerais e reflexões filosóficas, pode dizer-se que a informação histórico-bibliográfica de autores não latinos e os frequentes excursos de pretensão científica, notadamente astrológica, que singularizam a General Estoria estão, de algum modo, na raiz e na seiva da erudição historiográfica e científica do nosso cronista.

A utilização da General Estoria mostra bem a medievalidade da formação intelectual, do pensamento e da sensibilidade do autor da Crónica de Guiné—, e não só a General Estoria senão ainda as Taboas Alfonsinas, também plagiadas sem citação, como mostrou Esteves Pereira e acima deixamos indicado, e de que se valeu para mostrar erudição aparatosa, que não para estabelecer um cálculo astronómico.

O apreço pela General Estoria e o prestígio que os livros alfonsinos tiveram entre nós até meados do século XV, pelo menos, constituem motivo para se conjeturar que Zurara não poderia ter desconhecido as páginas da Cronica General de España, tanto mais que a livraria de D. Duarte guardava dois exemplares desta obra, que aparece citada expressamente na Virtuosa Benfeitoria (L. V, cap. 16).

É certo que Zurara não a cita explicitamente em parte alguma; no entanto, a conjetura parece volver-se em certeza quando se atenta no cap. XI, “como os letrados tornaram com rreposta a elRey dizendo que era seruiço de Deos de se tomar a çidade de Cepta”, da Crónica de Ceuta, no passo em que se rememora a assistência sobrenatural em campanhas da Reconquista cristã.

O reconto talvez possa considerar-se um lugar-comum, mas também pode ver-se nele o apanhado de passos da Cronica General, notadamente o primeiro, no qual aliás se cometeu o erro de trocar o nome do rei Ramiro pelo de Remígio e cuja fonte poderiam ter sido os capítulos 629 e 630 da Primera Cronica General.

IX) ESCRITORES E LIVROS PORTUGUESES

Não são abundantes as referências expressas de Zurara a livros e autores portugueses, mas são variadas e, em relação a alguns deles, da mais alta importância como único testemunho subsistente. Dividi-las-emos, por isso, em três grupos: as que se referem a escritos que não chegaram até nós, as que podem ser contraprovadas e as implícitas ou subentendidas.

No primeiro grupo, são mencionados escritos de Martim Afonso de Melo, Afonso Cerveira, Vasco Lobeira e do poeta e astrólogo judeu Yuda Negro.

De Martim Afonso de Melo, diz na Crón. de Ceuta que havia composto “per seu engenho e saber” um livro “que sse chama da guerra, no qual se comtem muitas e boôas emsinamças e auisamentos pera todos aquelles que teuerem fortelleza, ou alguu lugar çercado em from-taria de immiigos” (pp. 262-263).

A referência é precisa e clara, própria de quem tem ou teve o livro à vista e até possivelmente utilizou, dada a circunstância de Zurara lhe ter salientado o mérito relativamente ao tipo de guerra que mais necessitou de considerar nas suas Crónicas, a saber, a arte de fronteiro.

Nada se sabe da composição e estrutura deste livro, do qual não chegou até nós qualquer fragmento. A sua existência, porém, não pode ser posta em dúvida, já pelos termos com que Zurara se lhe refere, já pelo assunto de que tratava, pois a arte militar fazia parte dos conhecimentos indispensáveis à educação de príncipes e de senhores, de que deu prova o infante D. Pedro com a tradução do Epitome institutorum rei militaris Lib. V, de Fl. Vegécio Renato, que por então parece ter sido o mais reputado tratadista castrense.

O segundo livro referido, e também perdido, teve por autor Afonso Cerveira. Ocupava-se das conquistas dos portugueses pela costa de África, utilizando-o Zurara largamente, ao que parece, na Crónica de Guiné, na qual se lhe refere em três passos (pp. 165, 259 e 392), singularmente apreciáveis, por serem os únicos testemunhos conhecidos.

A existência deste livro também não é contestada, dada pelo menos, a circunstância de Zurara declarar que o utilizara e até, de algum modo, continuara; porém, já se não dirá o mesmo relativamente à extensão da sua influência na Crónica de Guiné, por ser assunto de larga margem conjetural e impossível de resolver textualmente.

O esclarecimento depende, em grande parte, do crédito que se conceder às próprias declarações do cronista, pois a sua fidedignidade é capital não só relativamente a Afonso Cerveira como a outros casos que não podem ser comprovados e entre os quais sobressaem os informes que incidentalmente mencionou acerca do autor do Livro de Amadis. É este um caso em que a sondagem no carácter, nos processos e na ética literária de Zurara tem consequências importantes. Atentemos nele.


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