Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Numa passagem autocrítica da Crón. do Conde D. Pedro, na qual pretende que se não confunda a sua atitude de historiador, atento ao que é importante e não esquece o ensinamento moral, com a do escritor imaginativo, de olhos fitos na “deleitação” do leitor, exemplificou o que tinha em mente com a alusão a duas obras, de interesse histórico-literário. O passo é o seguinte:

“Estas cousas, diz o Commendador [isto é, Zurara], que primeiramente esta Istoria ajuntou, e escrepveo, vão assy escriptas pela mais chaã maneira, que ele pôde, ainda que muitas leixou, de que outros feitos menores, que aquestes poderam fornecer: jaa seja, que muitos Autores cobiçosos d'alargar suas obras, forneciam seus Livros recontando tempos, que os Principes passavam em convites, e assy de festas, e jogos, e tempos allegres, de que se nom seguia outra cousa, se nom a deleitação delles mesmos, assy como som os primeiros feitos de Ingraterra, que se chamava Gram Bretanha, e assy o Livro d'Amadis como quer que soomente este fosse feito a prazer de hum homem, que se chamava Vasco Lobeira em tempo d'ElRey Dom Fernando, sendo todalas cousas do dito Livro fingidas do Autor: porem eu rogo a todolos que esta Istoria lerem, que me não ajam por proluxo em meu escrepver, tendo, que o fundamento foi tomado a boa fim” (pp. 422-423).

Como se vê, Zurara justifica-se de somente haver narrado o que lhe pareceu essencial e importante, deixando no silêncio o reconto de diversões, banquetes e festas, quer o reconto fosse exato, mas com o qual só aproveitava a “deleitação” dos Príncipes e Grandes, quer fosse imaginado e escrito unicamente “a prazer de um homem” que sobre a brancura do papel deixasse correr a pena para deleite da própria fantasia. Da primeira forma de reconto dá como exemplo “os primeiros feitos de Ingraterra”; da segunda, o “Livro d'Amadis”.

O primeiro destes dois livros, isto é, os “Primeiros feitos de Ingraterra, que se chamava Gram Bretanha”, identifica-se claramente com a Historia Regum Britonum, ou Historia Regum Britanniae, de Geoffrey de Monmouth (circa 1100 1155?), bispo de Santo Asaf o, que, como é sabido, assinala a fonte primacial do romance arturiano na Península e das famosas profecias de Merlin, de cuja personalidade se faz menção no Nobiliário de D. Pedro.

Como as demais citações, esta inculca também o problema da respetiva originalidade, isto é, se resulta de conhecimento direto, se de plágio ou de outiva. Temos a resposta também por sem dúvida: Zurara não plagiou a referência, nem falou de cor. É, certo que a General Estoria utilizou largamente a Historia Regum Britonum, tão largamente que “vemos dispersa pela II, III e IV parte desta História Universal uma tradução completa e literal da obra do bispo de Santo Asafo, a que Afonso chama a Estoria de las Bretannas, desde o III cap. do Liv. I até ao VIII do III.

Conhecendo, como conheceu, a General Estoria, Zurara leu nas suas páginas esta versão castelhana; no entanto, temos também por sem dúvida que conheceu o sumário da Historia de Geoffrey que D. Pedro, conde de Barcelos, inseriu no Nobiliário ou Livro de Linhagens (Tit. II) —, e até pode conjeturar-se com verosimilhança que dispôs de um códice com o texto latino da obra, se atendermos ao título que lhe atribui e à índole de ficção recreativa com que a caracteriza.

Com ser breve, a referência é contudo suficiente para mostrar que Zurara considerara a Historia Britonum obra de “deleitação” e, portanto, de índole fabulosa, no que mostra um espírito crítico e um sentido da exatidão bem diferentes do compilador da General Estoria e do Nobiliário do conde de Barcelos. Compreende-se por isso que se lhe referisse pondo-a a par do Livro d'Amadis, isto é, das novelas, e acentuasse o desejo de que se não confundissem os seus objetivos de historiador, fiel no relato, atento ao significativo e simples na narração, com o descritivo prolixo e fictício próprio dos novelistas.

A referência ao Livro d'Amadis aparece, pois, não com o fim direto de informar o leitor acerca da novela, mas para estabelecer o contraste com a sua própria atitude literária de cronista —, o que acarreta algumas consequências, como vamos ver.

Este passo da Crón. do Conde D. Pedro assinala, como é sabido, um testemunho capital acerca da famosa novela, de tantos e de tão densos e complexos problemas. Para o nosso ponto de vista, cumpre acima de tudo considerar que Zurara não fantasiou o título da obra —Livro d'Amadis— e não plagiou a referência que lhe fez, pois é única e não tem similar. Exprimiu juízos e transmitiu informes que tinha por exatos e oportunos, de sorte que as suas linhas acerca do Amadis comportam duas espécies de problemas diferentes: o psicológico, isto é, a intenção com que aludiu à novela, e o histórico-literário, isto é, o subsídio que os seus dizeres prestam aos debatidos e difíceis problemas da prioridade e autoria da redação portuguesa.

Só o primeiro importa ao nosso objetivo, como indício da ética literária do cronista, embora, rigorosamente se não possa separar do segundo, pois como há muito notou Menéndez y Pelayo, “o que importa é graduar o crédito que pode dar-se à notícia de Azurara”.

Pelo que atrás dissemos, consideramos estas linhas sinceras, isto é, sem segunda intenção, ou por outras palavras, como expressão natural de que associara a conceção da História à narração dos factos com significação coletiva ou patriótica, e a conceção da novela como o Amadis, à ficção da imaginação.

Não é este o parecer do Prof. William J. Entwistle, pois escreve a propósito da tese da prioridade da redação portuguesa do Amadis, que nestas linhas “o bom do Zurara, falsário de documentos, como provou Esteves Pereira, trata de anexar a sua glória para o seu País”. O nosso prezado Colega de Oxford atribui seguramente a Zurara intenções que ele não teve. Pode admitir-se que o cronista omitiu factos e juízos para não molestar o seu Rei ou para não sofrer os desgostos que o desassombro das opiniões às vezes traz consigo, e até deve reconhecer-se que o patriotismo lhe inflamou a alma; mas é inadmissível que tivesse redigido este período com preconcebida intenção, prevendo, com genial prefiguração da crítica histórico-literária vindoura, o curso dos vários rios de tinta que o debate sobre a prioridade da redação portuguesa ou castelhana do Amadis haveria de fazer correr três séculos depois da sua morte pelos prelos das nações onde se prezam os estudos de pura erudição e se não apagou de todo a flama da sensibilidade romântica.

Deve até dizer-se que Zurara não estabeleceu nem deixou de estabelecer qualquer tese acerca da prioridade da redação do Amadis—, limitou-se a deixar saltar do bico da pena o que de todos seria sabido na roda culta da corte de D. Afonso V, o último rei de sensibilidade medieval e de ideal cavalheiresco. No íntimo, a sua intenção era pessoal, isto é, que o não confundissem com os escritores de ficções e todos soubessem a razão por que as páginas das suas Crónicas não relativam diversões e episódios faustosos; por isso, alude à Historia de Geoffrey de Monmouth, escrita sem o escrúpulo da exatidão e em cuja leitura se deleitavam Príncipes e Senhores, e ao Amadis, bem mais modesto, — atente-se na variação de critério e de gosto — “como quer que soomente fosse feita a prazer de hum homem, que se chamava Vasco Lobeira, em tempo d'elRey Dom Fernando”.


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