Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Dir-se-ia que o cronista prezara na obra do avô de D. Dinis a expressão científica das disciplinas naturais e na do infante D. Pedro a reflexão convincente da sabedoria das disciplinas espirituais, e que calou o nome do monarca castelhano para que ninguém lhe exprobasse a mínima mancha na pureza dos seus sentimentos patrióticos, tão ardentes e suspicazes na alma de todos os que conviveram com a “ínclita geração”, assim como calou o do vencido de Alfarrobeira para não dar mostra de partidarismo. Será, porém, assim?

Zurara admirou o autor da Virtuosa Benfeitoria, de quem disse na Crónica de D. Duarte (p. 83) “que além de seu grande e natural saber, estudara nas artes liberaes e andara fora destes Reinos per a principal parte da christandade”, mas ao transcrever passos daquela obra jamais lhe referiu o nome.

Fê-lo na convicção de que em Alfarrobeira tombara um homem execrável e se colocara uma pedra definitiva sobre a sua memória e os seus escritos?

Fê-lo com medo e a furto, para que o não situassem no bando dos vencidos, que nunca deu proveito a ninguém?

Fê-lo com a coragem possível nas circunstâncias do meio e na sua situação de áulico e de valido de D. Afonso V, dado que a transcrição de tantos períodos era uma forma de preito e não podia constituir segredo para a roda culta da Corte?

c) O apuramento das fontes e de alguns plágios de Zurara mostra, em primeiro lugar, que as suas Crónicas exprimem um saber historiográfico apreciável, próprio de quem manuseou com alguma assiduidade as páginas de vários historiadores e cronistas; e em segundo lugar, que elas não podem considerar-se índice do “estado das Ciências e da Erudição entre nós no fim da Idade Média”, como julgou o visconde de Santarém. São, sim, reflexo, e bem transparente, da hierarquia dos valores morais e políticos e da estimativa em que eram tidas certas ordens de conhecimentos, mas não podem ser consideradas como expressão, pessoal ou geral, do próprio saber científico e filosófico.

Os plágios recaíram quase sem exceção sobre períodos de carácter científico ou filosófico —, o que implica a ilustração e o discernimento necessários para apreciar o valor desses períodos e o a-propósito das transcrições, mas não a posse do saber ou o exercício da capacidade reflexiva que eles encerrem. São, por assim dizer, contadas, as leituras diretas de carácter científico, tão contadas que parece não terem ido além da teoria elementar da Esfera, aliás considerada preferentemente sob o ponto de vista da aplicação astrológica.

O estabelecimento deste facto mostra que Zurara foi bem do seu tempo no apreço por uma ordem de conhecimentos que D. João I e os seus imediatos descendentes tiveram em alta conta, notadamente o infante D. Henrique, com o Secreto de los Secretos de Astrologia, ao que parece, perdido, e o infante D. Pedro, cuja teoria estratiforme dos modos de atividade humana justificava filosoficamente a influição astral a par da liberdade moral e da graça divina. Sob este ponto de vista, os períodos de carácter ou de pretensão científica das Crónicas, assim originais como plagiados, possuem significado histórico-cultural, denotando valores e estimativas vigentes no seu tempo, mas não permitem induções exatas e particularizadas acerca do saber científico-natural de quaisquer personalidades coetâneas, notadamente do infante D. Henrique.

O mérito de Zurara está alhures e tem a marca da sua individualidade: encontra-se no caminho que Aljubarrota abriu à renovação do País, e de que são marcos intelectuais as Crónicas de Fernão Lopes e os escritos de D. João I, de D. Duarte, do infante D. Pedro, de Vasco Fernandes de Lucena.

Não deve, pois, pedir-se-lhe o que ele não possui nem podia dispor; mas no que Zurara pôde dar e deu, bem merece o nosso reconhecimento, pela elevação dos sentimentos patrióticos, o nosso apreço, pela capacidade de admirar a nobreza das ações, e o nosso respeito, por ter sentido e compreendido o alcance das primeiras conquistas e navegações transfretanas, ou por outras palavras, a missão histórica de Portugal no Mundo moderno.


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