Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Os seus recursos de narrador somente se tornam compreensíveis com a prefiguração de uma alma que se dava espontaneamente à simpatia e à admiração — recordem-se os capítulos da Crónica de Ceuta relativos aos últimos dias da rainha D. Filipa — e se deleitava em traduzir o que sentia com as palavras mais nobres, mais comunicativas, mais dignas: “Nom soomente nos obriga a razão a escrepver as cousas cavalleirosas e humanas”, declara no início do capítulo LII da Crónica do Conde D. Pedro, “mas outras de que segue alguma proveitosa ou maravilhosa lembrança”.

Sempre estes predicados valeram a estimação e o aplauso; por isso, não admira que os próprios camaradas de ofício o louvassem, como Mateus de Pisano, e que D. Afonso V, o último rei-cavaleiro, na carta que, “escrita per sua mão”, lhe dirigiu em 21 de Novembro de 1467, reconhecesse oficialmente os dotes morais e os recursos literários do seu cronista: “muitos sam os que se dão ao exercicio das armas e mui poucos ao estudo da arte oratoria: assi que pois vos sois nesta arte assaz ensinado e a natureza vos deu mui gram parte della: com muita rrazão eu e os prinçipes de meus rreinos e capitães deuem dauer a merçe que vos seja feita por bem empreguada.

Se a crítica aceita de boamente o predicado de “bom gramático” já o mesmo se não pode dizer do de “distinto (nobilis) astrólogo”.

Como vimos, o Dr. Duarte Leite menospreza o saber astronómico de Zurara. As razões que apresenta são convincentes para quem se coloque no ponto de vista estritamente científico e aprecie o saber de Zurara à luz do saber contemporâneo. A Ciência, porém, como aliás todas as criações do espírito humano, quaisquer que sejam os sinais da universalidade, da necessidade e da perenidade com que ostensivamente se apresentem, jamais pode desprender-se do hic et nunc, isto é, do vinco epocal e local.

Na época de Zurara e na roda da corte, a Astrologia, no sentido largo do termo, isto é, a teoria da Esfera associada à credulidade na influição astral e respetivos vaticínios, era a mais prezada das Ciências da Natureza. Os testemunhos são numerosos, e mais probatórios se tornarão, decerto, quando forem publicados o Livro de Magica que compôs Juan Gil de Burgos e o Livro dos Juízos de Ali Aben Ragel, a que nos referimos (p. 266). A simples menção da existência destes manuscritos, até hoje despercebida, mostra evidentemente o interesse da corte de D. João I pelos assuntos astronómico-astrológicos e indica o conceito sob o qual se considerava esta ordem de conhecimentos, cuja consistência científica Pedro Nunes haveria de resgatar de cren-dices e de firmar em demonstrações sob o nome inebriante de Cosmografia à luz dele que devem ser apreciadas as numerosas referências astrológicas de Zurara, das quais é particularmente importante a que pôs na boca do “almocadem” Azmede ben Filhe, no capítulo LVIII da Crónica da Tomada de Ceuta. Poderia escrevê-las um ignorante?

Não é crível, porque se se pode conjeturar com inteira verosimilhança que Zurara não possuiu os conhecimentos que habilitassem a ler com consciência científica o Almajesto e o livro I da Geografia de Ptolomeu, esta conjetura não contradiz a certeza de que leu e assimilou os conhecimentos gerais que os escritos alfonsinos e os manuais astrológicos, notadamente de Alfragano e de Ail ben Ragel, proporcionavam. De outra forma, como explicar os numerosos períodos astrológicos das Crónicas e o juízo de Mateus de Pisano ao qualificá-lo de “distinto (nobilis) astrólogo”?

Finalmente, também não há dúvida que Zurara foi “grande (magnus) historiador”. O predicado é incontestável, se a sua obra se apreciar quantitativamente, no número e na extensão; sê-lo-á ainda se for apreciada qualitativamente?

De D. Afonso V e Mateus de Pisano aos nossos dias não faltam as opiniões e juízos mais ou menos originais e divergentes acerca dos méritos e deméritos de Zurara. Deixando-os de lado para considerarmos as Crónicas à luz do critério histórico-cultural também não hesitamos em reconhecer a justeza do predicado de Pisano.

Com efeito, enlaçam-se no pensamento historiográfico de Zurara os vincos da medievalidade aos sinais de quem pressente diversa maneira de discorrer. É medieval na conceção providencialista do acontecer, no relato do acontecido, no qual por vezes se descobrem o arquivista a fazer sombra ao cronista e o sacro a misturar-se ao profano, na técnica das abonações literárias e dos excursos científicos, que por tanto recorrerem à General Estoria inculcam uma influência singularmente extemporânea da obra de Afonso, o Sábio; contudo, é já moderno na admiração pelos rasgos e feitos de individualidades excecional mente dotadas, no apreço pelos depoimentos pessoais, os quais constituem grande parte do material com que construiu as Crónicas, no ideal pré-humanista do orador, isto é, do homem de sentimentos nobres e de frases eloquentes, onde confluam gracilmente a retórica, ou arte de bem falar, e a dialética, ou arte de bem pensar. A sua atitude, as suas ideias, os seus processos historiográficos não são compagináveis aos de João de Barros, de Damião de Góis e de Jerónimo Osório, representantes, cada um a seu modo, da historiografia humanista, mas, não obstante, Zurara pode gloriar-se das suas páginas já não narrarem minudências e ingenuidades por haver seguido “a teençom dos modernos”, para empregar uma expressão bastante significativa da Crónica de Ceuta (p. 199).

A sua narração está já distante da impessoalidade dos recontos medievais; percorre-a a visão épica de quem apercebera a vibração coletiva e a prefiguração da influência histórica dos grandes acontecimentos de que teve a dita de ser contemporâneo; anima-a o orgulho de Portugal, em cujo louvor deixou correr a pena na Crónica de Ceuta (cap. VI), um pouco no ritmo do De laude Spaniae de Santo Isidoro de Sevilha, mas com o calor de quem sente estuar no sangue o instinto irredutível da terra natal; e exalta-a o enlevo, de algum modo lírico, que brotava da gesta dos primeiros heróis do Além-Mar, a ponto de esquecer a objetividade do relato e de nele intervir com a digressão de rodeios e declamações.

 

b) Apura-se em segundo lugar que Zurara plagiou numerosos períodos de escritos que pela autoria e origem se reportam às grandes individualidades de Afonso, o Sábio e do infante D. Pedro.

Dissemos nos preliminares desta indagação que a existência dos plágios procedia de uma atitude perante a Verdade que exclui eticamente a ideia de furto que hoje associamos a tais processos; e agora, após a respetiva verificação, deve acrescentar-se que, por se tratar de autores e de escritos por todos conhecidos na roda intelectual da corte, Zurara não cometeu às escondidas tais plágios: usou de uma prática consentida pela consciência literária de então. Como podia ser considerada furtiva a prática reiterada de tantas transcrições, feitas com intervalo de alguns anos e que chegaram a ponto de Zurara ter copiado quase integralmente o capítulo primeiro da Crónica de Ceuta e o derradeiro da Crónica de Guiné!

O facto da transcrição apresenta-se sempre com a característica de não indicar a proveniência, e daqui ser-lhe adequada a designação de plágio; e além disto, é ainda de notar que Zurara foi buscar aos escritos relacionados com o infante D. Pedro o adorno das reflexões gerais, que podem chamar-se filosóficas se por tal se entender o que ultrapassa o simplismo imediato e aspira à universalidade, e aos que procedem de Afonso, o Sábio, alguns excursos e digressões de pretensão científica e geográfica.


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