Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Mas a verdade é que, se para Margarida de Navarra a explicação pode colher, o que é discutível, para aquele lugar da Virtuosa Benfeitoria é inteiramente inaceitável.

Este livro, onde se espelham a conceção da vida e a erudição da corte de D. João I com mais sentido impessoal e temporal que no Leal Conselheiro, teve duas redações. A primeira, esboço de autoria do infante D. Pedro, intitulada Dos Benefícios, estava concluída em 1418; a segunda (texto atual) —, na qual participou um desconhecido licenciado Fr. João Verba, que lhe deu certissimamente aquele aparato escolástico e recheio de citações que só ocorreriam a quem obteve um curso de Artes, senão uma licenciatura em Teologia —, antes de 1433.

O De docta ignorantia, livro algo lido no nosso Quinhentos e cujo conceito expresso no título se divulgou por poesias e por documentos e glosas de moralistas, e o De ludo globi estavam concluídos, como prova Paolo Rotta, respetivamente nos fins de 1439 — princípios de 1440 e 1460 —, isto é, depois da Virtuosa Benfeitoria, qualquer que seja a data que se lhe consigne.

Em nenhuma destas fontes poderia, pois, D. Pedro, ou o licenciado Fr. João Verba, seu colaborador, encontrar a fórmula; nem tão-pouco, segundo cremos, em qualquer dos escritores medievais (Gerson, S. Boaventura, Vicente de Beauvais, dito Belovacense) porque, além de não serem citados na Virtuosa Benfeitoria, acresce a circunstância de ser atribuída por alguns, como Vicente de Beauvais, a Helinando. Há, pois, que procurá-la alhures.

Durante a Idade Média abundou uma literatura moralizante, constituída por extratos e sentenças de vários autores, na maioria greco--latinos, na qual se destacam: Placita Philosophorum, de João de Prócida, o Compendioloquium e a Summa s. Communiloquium de João Galense (Wallensis ou Waleys), e o Liber de vita et moribus philosophorum de Gualterus Burlaeus (Walter Burley). Em qualquer destes livros, que em geral circularam em todos os meios cultos da Europa medieval, é possível que a fórmula tivesse sido lida; mas afigura-se-nos como mais provável que a tivesse encontrado no Communiloquium de João Galense, ou no Liber de vita et moribus philosophorum de Burley, se é que a não leu num livro inspirado nas obras do falso Dionísio Areopagita ou ainda no passo do De veritate, de S. Tomás de Aquino. Aqueles, concretamente, são citados na Virtuosa Benfeitoria, especialmente Burley, frequentemente sob os títulos Liuro da uida philosophal, Liuro da vida e costumes dos philosophos e Liuro da uida e costumes philosophaes, a ponto de constituir uma das fontes mais importantes deste interessante livro; e as obras do Areopagita e do Aquinatense, embora não pareçam citadas, não é crível que tivessem sido ignoradas, em especial aquelas, dado o imenso valor que se atribuía aos seus autores.

Desta já longa análise, uma conclusão se impõe: Zurara não citou o Pastor de Hermas, mas uma comparação comummente atribuída a Hermes Trimegisto e que encontrara no Trauctado da Uirtuosa Benfeyturia.

Pondo de parte a evolução desta imagem na nossa literatura, — assunto que merece um momento de atenção, pelas referências que lhes fizeram Heitor Pinto e Camões — prosseguindo na nossa inquirição, poderemos dizer relativamente a Hesíodo e Heródoto o que dissemos de Homero, Xenofonte e Arato: Zurara sabia-lhes o nome, e, à fé de qualquer obra medieval ou clássica, como no caso de Arato, cujo nome conheceria através de Cícero, atribuía-lhes a autoria de certos conceitos.

E ainda a mesma conclusão que se impõe quanto ao nome e à obra do fundador da Academia. Platão é citado apenas uma vez em toda a sua obra (C, 200), e não diretamente, pois refere-se a uma passagem do De officiis (I, VII) em que Cícero o alega. Se Zurara conhecesse algum diálogo do “divino” sem dúvida que o citaria, e a omissão, ligada às condições em que é invocado o nome de Platão, mostra-nos que não leu qualquer das traduções latinas dos poucos diálogos que entraram na biblioteca filosófica medieval: Phedon, Timeu (com o comentário de Calcídio) e o apócrifo Axiocus. Esta hipótese, absolutamente legítima, é corroborada pela análise das fontes dos monumentos literários coevos.

Na verdade, o Livro da Montaria, atribuído a D. João I, não cita o fundador da Academia, e a Virtuosa Benfeitoria, conquanto lhe refira o nome quatro vezes, também não denuncia o conhecimento de uma única obra platónica, invocando-se até expressamente numa dessas citações “hu uerdadeyro dizer do philosopho plato alegado em o livro da uida philosophal”, não constando, por outro lado, que o infante D. Pedro tivesse trazido de Itália, por compra ou oferta de algum humanista, qualquer códice platónico. No Leal Conselheiro é igualmente citado mas por intermédio do De consolatione philosophiae, de Boécio. Desta busca uma conclusão tiramos: até meados do século XV o nome de Platão é conhecido e venerado; atribuíam-se-lhe, a fé de escritores latinos (Cícero particularmente) e de alguns autores medievais (Boécio, W. Burley, etc.) alguns conceitos e máximas, mas a leitura de uma tradução integral de qualquer dos diálogos não é atestada.

Dado isto, compreende-se que o sentido de um ou outro conceito, incompletamente apreendido, fosse falseado; e assim é que, já quase no fim deste século, D. João Manuel, querendo exprimir quanto Álvaro de Brito Pestana era versado nos delicados problemas do amor, chamava-lhe “outro Platam”  — como se não houvesse um abismo entre as conceções do amor destes poetas, inteiramente medievais na forma e na essência, atingindo, quando muito, a teoria do amor cortês, e a filosófica conceção platónica. Verdadeiramente a obra platónica só foi conhecida entre nós em pleno século XVI, mercê das traduções de Marsílio Ficino; e da sua influência na nossa literatura, e de um modo geral no movimento das ideias em Portugal neste período, pouco se disse ainda do vário que o assunto reclama. Porém, o percurso dos moralistas e poetas, que na fonte viva do pensamento platónico beberam sugestões e na elevação das suas ideias colheram o alargamento da visão intelectual e a sublimação da sensibilidade estética, foi o Condestável D. Pedro de Portugal, em cujas obras, concordes com as de outros peninsulares contemporâneos, como já notou o sr. Bonilla y San Martín “late un anhelo de clasicismo, un deseo de resucitar la magestad de pensamiento y la belleza formal de las obras antiguas, que revelan á las claras la proximidad de una nueva etapa de cultura”.

Foi este infortunado príncipe, herdeiro no sangue e no espírito da desventura do seu sapiente progenitor, o primeiro português que leu um diálogo platónico, embora com atitude e espírito medieval, melhor direi, com os intuitos e preocupações moralistas, tão dominadoras na corte letrada de seu avô, o fundador da dinastia de Avis.

Na Tragedia de la insigne reyna dofia Y sabel, “que no fundo e na essência é um tratado de filosofia moral, em forma de uma visão dantesca, amenizado com líricas engastadas” como justamente a caracteriza a sapientíssima Sra. D. Carolina Michaëlis no seu erudito prefácio  à edição da Tragedia, há uma passagem que merece um momento de atenção: “Oye a Seneca, oye a Boecio, oye a Platon, oye a Socrates, quando desatado de las cadenas reyendo esperava la muerte, disputando alegremente com Simias e Çebes, afirmava el esperar moriendo bevir, e bolar à las celestes habitaçiones, reprehendiendo gravemente a sus amigos porque lhe lloravan, diziendo: O varones que fazedes? que por tanto enbie yo las mugeres: por que no fiziesen estas cosas. Yo siempre oy que el que parte desta vida deve partir en bendiçion e no en lloro”. Oye le quando le demandava Criton como queria que le enterrassen, que buelto a sus amigos sorreyendo dixo: “No puedo fazer creer a Cryton que yo sere aquel Socrates despues de mi passamiento que disputo agora”. Oye le quando sabia e ligeramente respuso a Simias que le decia que no le queria ser enojoso en aquel trabajo, diziendo: “E segund yo veo pensades vos outros que yo soy de mas baxa condicion que son los çisnes, que como se sienten çercanos a la muerte cantan mucho mejor que cantaron en el tiempo passado, ca se alegran por que se van para aguei dios de quien eran servidores E aviene assi que porque los hombres reçelan la muerte calumniam los çisnes, e dizen que lloran su muerte, e non piensan como ninguna ave es que cante quando ha frio, ni quando padesçe algun trabajo”.


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