Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Se Zurara nada lera da obra platónica, como acabámos de mostrar, o mesmo se não pode dizer de alguns escritos de Aristóteles.

O nosso século XV, logo desde o início, para não remontar mais longe, conhecia a obra do Estagirita, como a conheceu a Idade Média culta, oferecendo-nos a variedade de citações dos monumentos literários deste período um critério seguro para se apreciar a extensão de tal conhecimento. Assim o Livro da Montariarefere expressamente o De anima (Da alma, liv. III), não faltando, contudo, passagens em que nitidamente se nota a influência de Aristóteles, como nas considerações psicológicas sobre os sentidos (p. 5), a vontade (p. 6) e o conhecimento (pp. 5-6, 90, 91 e 94). Na Virtuosa Benfeitoria, D. Pedro (?), além deste livro, cita a Metafísica (Liv. I), o Organon (Lógica, livro postumeiro, isto é, o Lib. II Analyticorum posteriorum, os predicamentos (Categoriae) e a conexa Isagoge (Porfirio, em lógica); a Política (Da polícia, liv. I e II), Retórica (Liv. I), Física (Livro dos Físicos, liv. II), De Coelo (Cely e mundi, liv. I), Etica (Moral filosofia, liv. I, III, IV, V, VII, VIII, IX e X), citando ainda os Livros naturais (Liv. I e II), expressão que talvez designe a Física, talvez os tratados Parva naturalia.

Finalmente, no Leal Conselheiro, D. Duarte cita expressamente a Etica (Eticas, Ethicon, ou ainda Moral filosofia, liv. 6) a Política (Livro da Polícia), o Organon (Livro dos Tópicos), a Retórica (Da retórica) e o apócrifo De Secretis secretorum, do qual guardava na sua livraria um manuscrito, assim como o de uma Dialética, — talvez designação dos Tópicos, como aventa Teófilo Braga talvez a apócrifa Rhetorica sive Dialectica ad Alexandrum, como aventamos hipoteticamente, dado o vago do título.

O Leal Conselheiro em mais de uma página patenteia o frequente comércio com a obra do Filósofo; mas sem querermos analisar esta penetração do pensamento do Estagirita nas doutrinas do nosso rei-filósofo, não podemos passar em claro uma passagem que diretamente respeita à história do texto aristotélico no nosso século XV.

Trata-se da referência ao Memorial das Virtudes que das Heticas dAristotilles me ordenou o adayam de Sanctiago. Que livro é este, e quem foi seu autor?

Ferreira Gordo, nos já antiquados mas ainda úteis Apontamentos para a historia civil e litteraria cie Portugal e seus dominios colligidos dos ms. assim nacionais, como extrangeiros, que existem na bibliotheca real de Madrid, na do Escurial e na de alguns Snrs. e Letrados da corte de Madrid, referindo-se a Afonso de Cartagena, Bispo de Burgos, diz: “Este sabio bispo, sendo talvez embaixador em Portugal, foi rogado por... D. Duarte, que traduzisse em Castelhano os livros que Cicero escrevêra sobre a Rhetorica. Foi facil em deixar-se vencer das supplicas deste Principe, porêm traduzio o primeiro livro sómente, talvez por ser chamado para outras cousas do serviço d'ElRey seu Amo. Elle se conserva na Livraria do Real mosteiro do Escurial com este titulo: Libro de Marco Tulio Ciceron que se llama de la Retorica trasla-dado en Romance por el muy Reverendo Dom Alfonso de Cartagena Bispo de Burgos à instancia del muy esclarecido Principe Don Duarte Rei de Portugal. Este mesmo Bispo escreveu tambem para instrucção do dito Rei, sendo ainda Principe, huma pequena obra dividida em dous livros com o titulo “Memoriale Virtutum”.”

O Visconde de Santarém, referindo esta opinião, escreve: “Não é inteiramente exata a asserção d'este Academico á vista do que diz EIRey Dom Duarte, no cap. L, pelo modo seguinte: “O memoriale das virtudes que das heticas d'Aristoteles me ordenou o adayam de Santiago”. Limitou-se o sábio Visconde, a quem a erudição portuguesa é tão devedora, a contestar a opinião de Ferreira Gordo, sem esclarecer a sua própria, nem verificar se o bispo de Burgos, Afonso de Cartagena, fora ou não o “adayam de Sanctiago”. Se tivesse aplicado a sua penetrante e assídua investigação neste sentido sem dúvida lhe teria ocorrido o exame da España Sagrada, na qual Florez (t. XXVI, pp. 388-402), ocupando-se do episcopológio de Burgos, biografa Alfonso de Cartagena, bispo desta diocese desde 1435 a 22 de Julho de 1456.

Nesta biografia leria que “empezó à ser honrado con el Deanato de la S. Iglesia de Segovia, y tambien le hicieron Dean de la de Santiago, pues con ambos Titulos le nombra la Cronica de D. Juan II.

año de 20. cap. 299. ailadiendo el de Doctor, con motivo de referir la concordia que se trataba hacer entre los Infantes D. Juan, y D. Henrique, para lo qual fueron nombrados por parte de D. Juan el Obispo de Cuenca D. Alvaro de Isorna, y el Doctor D. Alonso de Cartagena, Dean de las Iglesias de Santiago, y de Segovia: prueba de lo conocida, y estimada que se hallaba en aquel afio de 1420. la literatura, prudencia, è integridad de este Doctor, de quien tambien se valió el Rey para enviar ordenes al Infante D. Henrique, en el año de 21”.

A confirmar irrefutavelmente esta identificação aparecem-nos as primeiras linhas do Memorial das Virtudes, hoje guardado no Escorial: “Porque las cosas nobles e provechosas mientras más se extienden al pro comum, non solemente más nobles, mas aún divinas se facen, segund que lo escribió Aristóteles en el tomo de las Eticas. Conmigo pensando determiné trasladar en nuestra comun lengua castellana un gracioso e noble tratado que de virtudes fallé, el cual de los dichos de los Morales filósofos compuso el de loable memoria D. Alfonso de Santa Maria, obispo de Burgos, al muy ilustre e muy ínclito Sr. D. Duarte, rey de Portugal, seyendo primero príncipe, al cual “Memorial de Virtudes” intituló. E por cuanto aquesta ciencia moral ó de virtudes requiere seis condiciones para se poder bien comprender, las cuales son edad provecta, forma compuesta, nobleza de linage, inclinacion natural à virtudes, subiccion de los apetitos ó turbaciones humanas, prudencia e experiencia de cosas passadas; e las tales se me represen-taron mucho en profession en ia muy excelsa e serenissima seriora la infanta D.a Isabel sobrina del dicho serior Rey, e madre de la muy alta e muy poderosa Sra D. Isabel, reina de Castilla, nuestra seriora, juzgué à su serioria más le pertenece lo primero, porque non es en edad tierna, mas ya madre fecha, etc.”.

Não podemos, pois, em face de tão categórica declaração, duvidar da autoria e da origem do Memorial das Virtudes, ordenado entre 1422-1424, sendo ainda príncipe D. Duarte. Nunca mais o vemos citado em qualquer livro de Quatrocentos, e parece mesmo que o tempo o fez esquecer, por não constar existir em outra biblioteca além da do Escorial; no entanto, a fama do bispo de Burgos prolongara-se pela geração imediata à de D. Duarte, pois Zurara, na Crónica da Tomada de Ceuta, recorda ainda o “adayam de Santiago que era muy gramde doutor” (cap. XXXI).

Difundida entre nós a obra de Aristóteles não surpreende que Zurara cite o Filósofo, tanto mais que algumas das suas doutrinas constituíam a base das conceções do mundo e da vida dos espíritos cultos da sua época.

Os únicos livros aristotélicos, porém, que expressamente cita, isto é, cuja citação pode considerar-se de sua iniciativa e diligência, são as Ethicas, Livro da Jconomica, o apócrifo Segredo dos Segredos, e um “liuro da natureza das animalias”, porque as citações dos demais são plagiadas, como logo veremos.

A omissão dos escritos metafísicos, lógicos e físicos, e o que é mais, de períodos cuja substância proceda de conhecimentos desta índole, é assaz significativa, autorizando o juízo, que outras vias confirmam, de que Zurara não teve na juventude a formação dos estudantes artistas e que na maturidade se não dedicou a tais leituras. Atentemos, porém, nos que refere com possível nota pessoal.


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