Evolução espiritual de Antero

A seu ver, este reportório de crenças e de ideias, que contrastava com a visão romântica do mundo natural e civil, designadamente de Garrett e de Herculano, para os quais, como bons individualistas, a reforma social seria corolário da reforma dos cidadãos, constituía a substância das afirmações e dos mandamentos da consciência moderna; por isso, considerou seu dever de homem-novo, de alma socializante, opor-se ao mundo do romantismo literário e do liberalismo da pequena burguesia, que alcançara expressão política com o regime da Carta Constitucional e consistência social pelo teor de vida da maioria das famílias.

Como não podia deixar de ser, a sua vida interior pulsa com ritmo e com sentido diverso dos escritores que se reputavam na primeira fila da Literatura: ao patriotismo mavioso e lânguido dos ultrarromânticos do Trovador, opõe o amor global e indiviso da Humanidade; à religião tradicional, um complexo de filosofemas, ou mais exatamente, de crenças filosóficas mais ou menos impregnadas de hegelianismo, que a extrema-direita da opinião que por então se publicava apontava como revolucionária e irmã gémea de Voltaire; ao sentimento da individualidade e ao conceito da Política tendo como objeto primacial a coordenação de direitos e a salvaguarda das atividades individuais, os quais nutrem o Liberalismo, a confiança na capacidade das massas trabalhadoras e a fé na realidade do espírito universal, em virtude do qual as manifestações do Pensamento não são episódios desconexos e esporádicos; à estabilidade das instituições sociais, a conceção da História, colhida principalmente em Michelet, como teatro da luta da Liberdade contra a Fatalidade, e, como fanal destas mutações profundas, a crença, haurida principalmente em Proudhon, de que a Humanidade, numa viragem de seu curso, se aproximava inelutavelmente de nova era de Justiça e de mais efetivas liberdades.

Quando Antero concluiu a formatura em Direito, em 1864, os seis anos que nela gastara não lhe nutriram a mente com o saber do jurisperito nem com a rabulice da advocacia, mas o seu espírito havia alcançado uma conceção do Mundo e da Vida a que mais ou menos se conservou fiel e cuja noção máxima, a ideia de desenvolvimento, foi mais tarde uma das pedras angulares das Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX.

A sua ideologia de homem-novo descansava principalmente sobre convicções firmes, e esta ideologia, que mais e melhor se exprimia por negações do que por afirmações, foi, de modo geral, a da sua geração, da qual disse com verdade na carta autobiográfica a Wilhelm Storck, que havia sido “a primeira que em Portugal saiu decidida e conscientemente da velha estrada da tradição”.

A partir de então nada se passa no seu espírito que seja objeto de anedota. É que Antero passa a conceber a vida como missão —, missão revolucionária, sem dúvida, mas também missão de reformador moral e justiceiro. Luta e reformação serão, pois, os signos do seu destino: ao princípio, luta contra os ideais literários do ultrarromantismo, mais tarde, luta contra o conservantismo político e social, por fim, luta consigo mesmo, contra o desalento que a doença lhe gerara e contra o desespero metafísico a que o conduziu a reflexão orientada por certas leituras filosóficas.

As manifestações do espírito novo alvorejaram por 1861, aos dezanove anos, com a conceção da poesia como afirmação doutrinal e como expressão de uma sensibilidade que já não é romântica.

Da primeira, é exemplo frisante a poesia A João de Deus (Abril de 1861).

Poeta, essa não é tua missão. Curvar-se

Um momento é do homem; porém não prostrar-se

 Gemendo em desalento, e face contra o chão,

 Como quem aceitou da dor a escravidão.

Poeta é quem tem fé, quem busca no futuro

A crença que lhe nega este presente impuro:

Não quem deixa cair a lira, não quem vai

Pedir ao desalento abrigo e amor de Pai.

(Nos Raios de Ext. Luz)

Da segunda, a publicação em opúsculo dos vinte Sonetos, conhecida pela designação da “edição de Sténio”.

Significam, sob o ponto de vista da forma, uma ofensiva anti--romântica, por vazarem a expressão no modelo dos catorze versos que Petrarca criara e se tornara apertado e exíguo para a expansão das efusões da alma romântica, e sob o ponto de vista do fundo, o repúdio dos temas consagrados e a existência de uma sensibilidade cujas raízes se não nutriam no mundo tido então por poético.

O espírito novo, porém, só alcançou densidade e expressão literária original com as Odes Modernas, concluídas em Dezembro de 1863, quando Antero frequentava o quinto ano jurídico, mas publicadas em 1865. As Odes, cujos retoques da segunda edição (1875) revelam persistência na sinceridade da atitude espiritual que lhes deu ser, tem o significado histórico de um acontecimento literário, de uma profissão de fé e de um manifesto revolucionário.

Com a sua publicação, o nome de Antero ultrapassou, rapidamente, o círculo dos condiscípulos, dos amigos e dos admiradores de Coimbra para se divulgar e tornar discutido em todo o País.

Nos versos candentes das Odes, confraternizam o poeta e o panfletário. O poeta é poeta na medida em que contribui pela idealização e pelo incitamento para a melhoria do mundo moral e civil, e não na subjetividade com que exprime vivências ou no requinte com que se submete às exigências de um ideal estético; por isso, no seu verbo a poesia se veste de eloquência, para se tornar mais acessivelmente arma de combate e de predicação.

surpresa pela inovação da expressão verbal acrescia a novidade dos temas, e, como não podia deixar de ser, provocou escândalo a matéria terrivelmente estranha dos seus versos de profeta e de apóstolo da Revolução, tanto mais que irradiavam um visceral desprezo pelos temas amorudos, luarentos, medievais e mourescos que teciam a modesta glória dos poetas fiéis ao manifesto do novo Trovador, “pequeninas sensibilidades, pequeninamente contadas, por pequeninas vozes”, como disse Eça de Queirós nas Farpas (1871).

Na final das Odes, sobre a missão do Poeta, Antero afirmava que “a poesia que quiser corresponder ao sentir mais fundo do seu tempo, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária”. Esta missão revolucionária comportava logicamente dois momentos ou fases: uma demolidora, outra construtiva, ou melhor, profética.

No seu pensamento, crepuscular perante a torrente sentimental, a demolição foi mais extensa do que a edificação, que ingenuamente se anunciava como “reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da justiça, da razão e da verdade, com exclusão dos reis e dos governos tirânicos, dos deuses e das religiões inúteis e ilusórias a aspiração mais santa desta sociedade tumultuosa que uma força irresistível vai arrastando, ainda contra vontade, em demanda do mistério tremendo do seu futuro”.

É pelo espírito apologético e demolidor, pela sincera coragem de afirmar, pelo inédito dos temas e pela impetuosidade dos versos que as Odes Modernas marcam na vida intelectual de Antero e na história literária portuguesa. O camartelo nada poupava. O Estado, a Igreja, o ensino, a família, a propriedade, tudo lhe parecia exalar “um fartum sulfuroso e infernal de heresia e revolução que sufoca”.


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