Evolução espiritual de Antero

Com efeito, o mundo tradicional, do ultrarromantismo e da filosofia da Ordem, — a Ordem tinha então a sua filosofia e a sua sociologia, não se efetivando apenas pelo agente da autoridade, — era dominado pela categoria do ser, do estável. Disse-o Renan, no fogoso livro da juventude que é o L'Avenir de la science: “outrora tudo era considerado como sendo: falava-se do Direito, da Religião, da Política de uma maneira absoluta”.

Em oposição a esta visão de um mundo consolidado, o mundo novo aparecia dominado pelo deviente, pela mobilidade, pelo relativo, numa palavra, pela ideia de evolução. É sob o ângulo da mutação e da alteridade que se veem as coisas e as sociedades, que se observam os homens, e se examinam os produtos da sua fantasia e da sua razão. A marcha da verdade deixa de ser vista em sentido retilíneo, para ser olhada ao longo da linha sinuosa e cambiante das vicissitudes do seu inevitável triunfo final. O homem decai de rei da Criação, um mito, para simples parte dum todo, e como que se submetem a Natureza e a História a uma única universal necessidade. Deus é destituído da transcendência, para devir a categoria do ideal, móbil na sua essência, e perante estas ruínas imensas uma única crença persiste: a religião da Ciência e a fé no Progresso indefinido do espírito humano.

Orientados por estas ideias gerais, os mais belos espíritos têm a sensação de devassar terra incógnita. Os filólogos, isto é, os amantes do Logos que não da logotecnia, em demanda das origens, para surpreender a evolução das criações espirituais, estudam as línguas mais antigas e os textos mais primitivos. O primitivismo tornou-se moda, e não apenas na Filologia, senão em todas as manifestações históricas da Humanidade. Como escreveu Teófilo Braga, com exato sentido histórico-cultural, apesar da feição autobiográfica dos seus períodos, “a leitura da Ciência Nova, de Vico, das Origens do Direito Francês, por Michelet, revelando os vastos materiais da Poesia do Direito Germânico, de Jacob Grimm, abriram-nos um horizonte imenso para a compreensão do elemento sentimental das instituições sociais e para o lado vivo e sério da tradição dos povos. A alma repassava-se nesse oceano de Poesia, fecundada sobreabundantemente para a erudição e para a idealização, levando à frente as duas empresas a exploração do Romanceiro, Cancioneiro e Novelística populares portugueses, e a construção da Epopeia da Humanidade pela aproximação de todos os símbolos de cada povo ou civilização representando o esforço do resgate das fatalidades cósmicas e históricas até atingir a liberdade mental e social”.

Sob o guião distante de Vico, admitia-se que o mundo incoativo dos mitos e dos símbolos esclarecia a génese e a desenvolução das instituições sociais e que a Humanidade é na essência Histórica, ou por outras palavras, os valores espirituais e sociais nascem e expandem-se mediante um processo autónomo de desenvolvimento. As religiões, em particular, são estudadas e explicadas naturalmente, como produtos do acontecer social e algumas vezes como mitos, nos quais se espelham maravilhosas imagens da Natureza, acessíveis à compreensão do homo credulus da infância da Humanidade.

Pode, porventura, esquecer-se a Vida de Jesus, de Renan, publicada em 1863? O escândalo ressoou por toda a Europa, tão retumbante que constituiu um dos acontecimentos significativos da contenda ideológica dos meados do século. Em 11 de Março de 1864, A Nação, órgão do Legitimismo, anunciava que ia ser posta à venda a Vida de Jesus, de Renan, traduzida por F. F. da Silva Vieira e denunciava o facto para que o Patriarca de Lisboa não ficasse “impassível” perante a publicidade de “uma obra que ataca um dos fundamentos da religião do País”. Cinco dias depois, o sacerdote José de Sousa Amado informava no mesmo periódico que o Patriarca estava tomando “as medidas definitivas que julgou mais tendentes para atalhar o mal que pode resultar daquele livro infame”, no que era secundado pelos Bispos de Lamego, do Porto e do Algarve. A Nação apoiava as reclamações, esperando “que o Governo português cumprirá o seu dever impondo ao editor as penas das leis vigentes e que proibirá a circulação da edição”, manifestando-se contra o “miserável tráfico sobre a curiosidade” feita por um ateu, ímpio e ignorante.

vivacidade destes sentimentos respondeu a vivacidade dos sentimentos liberais, designadamente nas colunas do periódico O Português, que defendeu Renan das imputações de ignorante e de ateu, e com manifesto exagero anunciava aos seus leitores em 19 de Abril deste mesmo ano de 1864, que se deveriam ter vendido em Portugal dois mil e quinhentos exemplares da Vie de Jesus, quantidade que A Nação considerava excessiva, pois, escrevia, “talvez nem cem fossem”.

Este incidente, um dentre os vários que denunciam o sentido e a estrutura da contenda ideológica de que Antero foi a um tempo influenciado e influente, comporta dimensões de índole diversa, bastando ao nosso ponto de vista acentuar somente a ambição de se atingir a explicação crítica e histórica das Religiões, cujos fundamentos foram lançados por Espinosa no Tratado Teológico e Político. Houve, sem dúvida, sábios que guardaram discreta imparcialidade perante a nova tábua de valores críticos e filosóficos, porém, a maioria seguiu apaixonadamente, pró ou contra, as respetivas aplicações, no convencimento de que o estudo crítico da Humanidade tinha alcance pragmático e podia desentranhar-se em benefícios acessíveis aos próprios contemporâneos.

Como irradiação desta visão do Mundo, que Victor Hugo exaltou, os poetas saint-simonianos e Leconte de Lisle, nos Poèmes Barbares (1862), transpuseram com mais ou menos pureza para o verso e Teófilo Braga, entre nós, derramou torrencialmente em prosa e verso, num esforço gigantesco que não tem par, pode dizer-se que se manifestou popularmente pelo republicanismo inimigo das autocracias do espírito e, em grau menor, do capital, pela hostilidade ao clericalismo, pela extensão ilimitada da crítica, pela confiança inabalável na potencialidade do Ideal e pela visão evolutiva da História humana.

Tal era, nos seus caracteres mais gerais e generalizados, o viático intelectual da geração académica de que Antero, como disse Eça de Queirós, foi “Bardo, um Bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades”. Quase todos os escritos dos estudantes da década 1860-1870 exprimem esta ideologia, mas nenhum como Antero sentiu a “grande tristeza” de abandonar a “Igreja mística, Madalena do mundo” e, “filho de outros céus e de outros cultos” (Flebunt euntes, 1864), assimilou e transfigurou com mais personalidade, elevação e poder irradiante o novo credo.

Três colunas, por assim dizer, lhe sustentam por então a conceção do Mundo e da Vida: como mente que discorre, a atitude crítica e racionalista; como inteligência que abraça o Universo numa visão geral, a confiança na Ciência e o reconhecimento da evolução como lei sem exceção nem limites; e como alma que sente e anela, a certeza do progresso da Humanidade e a convicção de que a reforma moral dos indivíduos e a edificação definitiva do exercício das suas liberdades hão-de ser a consequência necessária da Revolução, isto é, da transformação da sociedade em função da Justiça Social.


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