Evolução espiritual de Antero

Tais se me afiguram, — e a interpretação resulta do exame desses sonetos à luz do ideário filosófico das Tendências, método fecundo e creio que nunca aplicado — a liberdade, concebida como ascensão do ser (sonetos Evolução e Contemplação), a realidade objetiva do Ideal (Transcendentalismo), a conceção da razão como ordenadora e centro do Universo (Logos), a conquista da eternidade pela

….comunhão ideal do eterno Bem

(Com os Mortos)

e a dissolução do egoísmo pela renúncia (Na Mão de Deus).

Estes sentimentos, fortemente intelectualizados, aliás, a que a intuição do Amor veio dar remate metafísico, atraíram o espírito de Antero para uma via na qual o conhecimento que explica serviu de instrumento para obter o conhecimento que salva, ou, mais propriamente, o conhecimento em que as razões explicativas se prolongaram e compenetraram nas “razões do coração”.

“A verdadeira filosofia, escreveu Antero, em 1877, num artigo sobre Jules Michelet, foi e será sempre um alto e largo ecletismo, em que os dados da razão se combinam com as afirmações do sentimento moral, limitando-se e corrigindo-se mutuamente. O espírito de sistema pode brilhar na escola, mas na vida e na história só triunfa definitivamente e faz obra fecunda o espírito prático e humano”.

Foi esta humanização da vida, quer dizer, a conquista de um sentido e de uma significação moral da existência, que Antero procurou com redobrada intensidade depois da experiência pessimista, e à qual deu uma fundamentação, filosoficamente coerente, mas breve para o seu talento, nas Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890).

Antero possuiu em alto grau a vivência total da inquietude filosófica, não propriamente no sentido inquiridor da problematização mas na largueza de vistas e na compreensividade superadora, apesar da escassa cultura científica; sentiu, no entanto, intimamente, a falta de dotes estritamente lógicos, graças aos quais o pensamento adquire feição demonstrativa. Na forma mentis, nunca deixou de ser homem de letras, de cuja pena saíam fácil e perfeitamente exposições, apelos, exortações e reprimendas, mas sempre na linguagem da persuasão, que não na da demonstração.

Deslindar e discernir são exigências do pensar que filosofa com preocupação de exatidão e de clareza, e o espírito de Antero era demasiado desejoso de resultados rápidos para se deter na tarefa daquelas pausas, quase sempre fastidiosas e apagadas. Daí, a confidência a Jaime de Magalhães Lima, em 1886, de que se tivesse dotes demonstrativos “seria considerado o maior filósofo do meu tempo”. Três anos mais tarde, escrevia a Eça de Queirós que desistia de expor a sua filosofia, “porque fazê-lo estaria acima de minhas forças e, ademais, ninguém me entenderia”. Quer isto dizer, que a exposição das Tendências fica aquém do que o próprio Antero desejava dizer ou tinha por acabado, mas não obstante, as páginas deste ensaio alcançaram lugar inconfundível na nossa literatura filosófica.

Leal e porfiadamente pensado, o pensamento das Tendências não é um embrechado de opiniões. Intuição fundamental e alentadora, problematicidade coerente e incitante, esforço inquiridor e de informação, ideia condutora e englobante, dão-se e compenetram-se mutuamente, conferindo à reflexão e, principalmente, ao discurso, a sigla da personalidade. Com veemente sinceridade, como é próprio da filosofia de alguém, sem a impedimenta de um filósofo escolar, as Tendências são a expressão viva do esforço de Antero em demanda de uma conceção universal, do Mundo e da Vida, que, estabelecendo a ponte entre a Ciência e as aspirações morais, lhe dissipasse a sensação de “suspensão da consciência”, que o Naturalismo lhe provocara.

O pessimismo havia sido, em parte, o protesto da sua consciência contra esta sensação, ou seja, a repercussão emotiva da conceção do Universo como sistema mecânico e do protesto do ideal e da pessoa contra uma realidade que as ignorava, mas este protesto, se atingiu estética e subjetivamente perfeição admirável no conjunto da literatura pessimista — o confronto com Byron, Leopardi, Nerval, Leconte de Lisle e Ackermann impõe-se para glória de Antero — não alcançou a profundidade e a elevação moral do ideário das Tendências. Aqui, já não vibra somente o protesto da consciência desalentada e solitária: palpita intensamente a convicção da conquista serena e raciocinada de realidades espirituais, graças às quais ultrapassou as limitações do positivismo, do materialismo e do próprio pessimismo.

A motivação dos valores éticos, ou, mais propriamente, a justificação de um soberano Bem, constituiu, a um tempo, o impulso e o termo do filosofar de Antero. Saber como as coisas são no seu acontecer ou ainda como se conhecem não constituiu o estímulo próprio da sua reflexão, ambiciosa acima de tudo de uma fundamentação do dever-ser, para que a existência da consciência humana se não tornasse mero e obscuro episódio da força e da matéria, e a vida espiritual alcançasse existência própria e, para tudo dizer, ética.

“Terrível metafísica! É o nosso ecúleo, escreveu-me V. uma vez. E é. Mas como ela é a essência da religião, tem cada qual nestas épocas cruéis, em que a grande crença coletiva se dissolve, de a procurar sozinho com o suor do seu rosto e a ansiedade do seu coração, para conseguir uma espécie de religião individual, que no fim de contas nunca pode equivaler em firmeza, confiança, serenidade, àquela ampla comunhão espiritual, ideia-sentimento em que a fraqueza do indivíduo se ampara na potência da coletividade”, escreveu, em 1876, aos trinta e quatro anos, com vinco proudhoniano, a Oliveira Martins.

Uma espécie de religião individual, disse, e esta demanda, prática, como que de salvação, define o conceito da função da Filosofia, que se lhe tornou constante.

“Depois que a experiência me ensinou, disse Espinosa no início do Do corregimento do intelecto, que todas as ocorrências mais frequentes na vida ordinária são vãs e fúteis, e quando via que todas as coisas, que eram para mim coisa ou objeto de temor, nada continham em si de bom ou de mau, a não ser a proporção do movimento que excitam na alma, resolvi finalmente investigar se existia algum objeto que fosse um bem verdadeiro, capaz de se comunicar e pelo qual a alma pudesse ser afetada unicamente, com exclusão de qualquer outro, um bem cuja descoberta e aquisição desse a posse de uma alegria contínua e suprema para toda a eternidade”.

Foi um valor análogo que Antero procurou nos seus últimos anos de vida. A arquitetura, solidez e coerência do seu pensamento, assim como a amplitude e consistência da informação e da visão, distam incomparavelmente do pensamento de Espinosa, mas, não obstante, entre a Ethica more geometrico demonstrata e as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX existe o parentesco do rumo da reflexão no sentido da obtenção de um valor cuja posse confira ao espírito a segurança da sua posição e destino.

É, este conhecimento e sua fundamentação que, pelo significado espiritual que contém, vamos resumir, deixando de lado outras ideias que o estudo pormenorizado do pensamento anteriano e das suas fontes, relações e oposições, necessariamente exigiria.


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Vamos corrigir esse problema