Evolução espiritual de Antero

As Cartas e os Sonetos revelam, pelo menos, duas fases na conceção do Nirvana, que recordam, de algum modo, a diferença que Schopenhauer estabelecera entre a sua filosofia e a do asceta hindu: nas Cartas, o Nirvana é apresentado como experiência pessoal de libertação, e nos Sonetos, a conceção transcende a pessoa, para ser o corolário de uma filosofia. Por isso, no soneto que estamos considerando, pode entender-se uma terceira interpretação, ética, de compaixão e identidade com todos os seres; mas acode ao meu espírito a conceção monista do amor, que Hartmann expôs na Fenomenologia da Consciência Moral. «Vimos... que o sentido mais profundo do amor consiste em tratar o amado, como se ele fosse, na sua essência própria, idêntico ao eu; se esta premissa instintiva é uma ilusão, pode dizer-se o mesmo do amor em geral, implícito nesta premissa.

“Se pelo contrário é, de todos os nossos impulsos morais instintivos, o mais alto, o mais nobre e o mais divino, nem ele nem a sua premissa fundamental podem ser ilusões e devemos ver na sua antecipação afetiva e na realização parcial do princípio da identidade essencial dos indivíduos uma espécie de intuição inconsciente e inspirada, que nos dá um pressentimento profético do que constitui a base absoluta da moral e sua verdade... Sob o ponto de vista afetivo, e de um modo parcial pelo menos, o amor equivale ao que é, no ponto de vista teórico e universal, a intuição da identidade essencial dos indivíduos. Sem dúvida, no amor o princípio moral absoluto da identidade essencial não se aplica senão a algumas pessoas; mas em compensação, e em virtude da sua aplicação limitada, oferece-nos a garantia afetiva de uma eficácia prática, enquanto a intuição puramente teórica é compelida a recorrer ao auxílio da razão ou do sentimento religioso para adquirir uma força de motivação prática. Certamente a intuição (puramente teórica) da identidade essencial transforma teoricamente o egoísmo numa ilusão, mas deixa-o intato no ponto de vista prático... O amor, pelo contrário, não tendo geralmente consciência da sua base metafísica, constitui, em relação ao amado, uma vitória instintiva e real sobre o egoísmo, e isto num grau tanto mais acentuado quanto ele próprio for mais forte. O princípio moral absoluto da identidade essencial põe um problema moral de ordem geral. Deste problema, que consiste em superar o egoísmo, em favor da essência única, comum a todos os indivíduos, o amor representa a primeira solução, solução particular, é certo, pois que ignora o carácter geral do problema, talvez o próprio problema”. (Apud Max Scheler, Natureza e Normas da Simpatia).

Hesito em afirmar que Hartmann tivesse sido, uma vez mais, o incitante da inspiração de Antero, embora se não deva esquecer que a Phlinomenologie des sittlichen Bewusstseins (1879) existia na sua livraria de ledor curiosíssimo da literatura pessimista; mas pelo menos estas páginas merecem ser recordadas como comentário filosófico e expressão de um conceito erróneo, porque, sobre ser uma amplificação do egoísmo, desconhece a essência do amor, cuja fenomenologia revela ser inseparável do reconhecimento da independência de outrem.

A cronologia estabelece que depois do soneto Solemnia verba, de Abril de 1884, Antero escreveu os sonetos, Luta, em Abril de 1884, Comunhão, em Junho de 1884, O Que Diz a Morte, em Março de 1885, e Com os Mortos, também em Março de 1885, mas a distanciação no tempo não afeta os juízos expostos. É que nenhum destes sonetos mostra, verdadeiramente, um valor novo na génese da inspiração: Luta, opõe a dúvida do destino humano à regularidade e constância da Natureza; Comunhão, talvez eco da ideia de Proudhon que inspirara o soneto Eutanásia, sugere como destino da consciência individual (ou antes, individualizada) a integração na continuidade das gerações; O Que Diz a Morte, exprime a ideia trivial da morte como cessação das dúvidas e sofrimentos, e Com os Mortos, brotou da confiança na indestrutibilidade do amor e da amizade

Na comunhão ideal do eterno Bem,

ou seja, a outra luz, a afirmação da transcendência do Amor, agora identificado ao Bem, que inspira o soneto Solemnia verba. A última palavra de Antero, nos Sonetos, é, pois, o Amor, identificado com o Bem, e considerado como valor supremo e expressão máxima da existência. Com a apreensão deste valor, o Poeta estabeleceu a mediação com o Pensador, porque as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX são, na estrutura e na intenção, a fundamentação e a explicitação da derradeira palavra dos Sonetos, — o que, aliás, Antero disse por outras palavras a W. Storck, na Carta autobiográfica: “Os últimos vinte e um sonetos do meu livrinho dão um reflexo desta fase final do meu espírito e representam simbólica e sentimentalmente as minhas atuais (V-1887) ideias sobre o mundo e a vida humana...”.

Atentemos, pois, nos pensamentos das Tendências, mas antes desembaracemo-nos do equívoco que pode gerar a presença das leituras com que temos deparado no decorrer da inquirição deste ensaio breve.

A influência de Hartmann e de modo geral as influências sensíveis nas ideias cie Antero, de que demos somente amostra, não no-lo apresentam como eco nem lhe diminuem a originalidade. A originalidade não consiste apenas na singularidade absoluta da criação, se acaso esta é possível; verifica-se também quando o espírito com autonomia e consciência aceita o que outros disseram e reelabora com plena independência.

A pretensão de se bastar a si próprio e o narcisismo da inteligência são quase sempre uma marcha para a esterilidade. O espírito vive de comunicação e de contínua permuta, e não de barreiras nem de autolatrias.

Nos Sonetos, a subjetividade e a emoção que os impregna conferem ao pensamento que eles expressam um valor pessoalíssimo; e nas Tendências, apesar de se poderem determinar as fontes de uma ou outra ideia e de um ou outro passo, o conjunto patenteia o encadeamento coerente do pensar, somente possível pelo repensar autónomo. Ao invés da glosa ou do comentário, isto é, da subserviência do espírito, e da marchetaria de elementos alheios dispostos com habilidade de artífice, transparece com evidência a preocupação da coerência e da continuidade lógica.

Foi justamente por muito ter lido, meditado e discutido, que Antero pôde exprimir com singularidade pessoal algumas inquietudes da consciência humana. Por isso, a investigação das fontes do seu pensamento, que é uma exigência do método crítico e da apreciação conscienciosa, reforça, com mais vigor para a nossa admiração, a pujança e a intensidade das criações da sua vicia espiritual.

Por mais existentivo e óbvio que o pessimismo seja pensado, no seu âmago há sempre um juízo de valor e um ato de crença. Como tal, irrefutável, mas há caminhos que podem conduzir ao reconhecimento da sua incongruência.

Em Antero, a superação da desvalia da existência fez-se eticamente. A intuição monista do amor, em condições que talvez sejam criticamente quase um desafio às formas do conhecer, “à força de idealidade”, foi o termo deste processo espiritual de superação. E digo termo de um processo, porque alguns sonetos do último ciclo revelam a existência de um núcleo de sentimentos fortemente intelectualizados, os quais, virtualmente pelo menos, continham a valoração positiva, embora hesitante, da Vida.


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