Evolução espiritual de Antero

Este é o tema dominante dos sonetos do quarto ciclo e de parte dos do quinto, bastando a mera apresentação do facto para mostrar que o pessimismo de Antero não foi artificiosamente literário nem ressentidamente pessoal —, a exploração de um tema inusitado na literatura portuguesa, a réplica vingativa de uma sensibilidade atormentada ou a maldição de um doente incurável.

É vulgar dizer-se que se nasce pessimista, como se nasce otimista. Não são, sem dúvida, de menosprezar as tendências na formação e constituição da personalidade, mas, apesar de as não sondarmos e de não tentarmos uma investigação psicanalítica, não só instrutiva como necessária principalmente sobre o mecanismo da inspiração, tenho por seguro que Antero não nasceu pessimista: perfilhou uma posição filosófica, que a sua constituição psíquica propiciava e a enfermidade estimulou, mas que se lhe impôs como produto da razão discursiva que, mais tarde, a mesma razão discursiva desaprovou e superou.

Evidentemente, seria insensatez menosprezar a experiência dolorosa de Antero, tão cruciante e prolongada, bem como desatender aos seus “complexos” sentimentais e, porventura, à diátese de uma hiperestesia que o tornou extraordinariamente sensível às vicissitudes do meio social e aos reveses da vida afetiva. Sofreu fisicamente dores prolongadas e intoleráveis; afetivamente, experimentou o ressentimento de uma deceção amorosa, pelo menos; e como teorizador, senão orientador político, a realidade trivial deu-lhe a conhecer o sentimento da própria incapacidade prática, desiludindo-o da mística revolucionária e convencendo-o de que se o presente é detestável, o futuro é impenetrável e tenebroso. Sem a enfermidade e o tedium vitae que ela gerou não se compreende o pessimismo de Antero, bastando a coincidência cronológica para estabelecer a correlação; não obstante, o que importa é o sentido e o teor da conceção anteriana, e esta não é afirmação de um estado mórbido, mas de uma doutrina, ou mais propriamente de uma filosofia que aspira à coerência e à consistência.

A dor, nas suas formas mais requintadas, acompanha-se de elementos fortemente intelectualizados, tornando-se tanto mais aguda quanto a memória e a imaginação a prolongam e a mente se reconhece impotente para a vencer e eliminar. Antero teve, com intensa acuidade, esta consciência da dor, quase implorando aos íntimos uma palavra de confiança no alívio das suas dolências.

Da consciência da dor à conceção da desvalia da existência não era longa nem difícil a passagem, e, com efeito, há uma confidência a Oliveira Martins claramente reveladora do trânsito da conceção prospetiva e confiante das Odes Modernas e dos sonetos dos primeiros ciclos para a visão pessimista da vida. É o momento em que a doença se lhe instalou com insistente presença e a doutrina budista lhe surge e, suave e progressivamente, começa a destronar no seu espírito o império das conceções de Michelet e de Proudhon:

“... Não estou em estado de nada dizer de pensado e que mereça ler-se, porque tenho passado mal há dois meses. De corpo, com os meus desarranjos nervosos, insónias de espírito, atacado por um daqueles períodos de abatimento e indiferença de budista, que são próprios do meu temperamento. Já vê que pouco tenho aproveitado para o meu livro : algumas leituras distraídas, nada mais. Sinto o desejo do Nirvana, senão como um grande contemplativo, pelo menos como um doente. A doença de um modo ou de outro, é o meu estado normal. Há organizações assim. Tenho um horror instintivo, e como que inato, a todas as ideias que representam a atividade da vida, como plenitude, felicidade, esperança e outras deste teor. Não ando senão por intermitências, e aos empurrões.

“Para tudo dizer numa palavra, nasci monge. Entenda para seu governo que não pode contar comigo senão por acidente. Sou, ou posso ser, um auxiliar: soldado ativo não. A minha cabeça conserva-se lúcida, mas o resto insurge-se: ora o resto, em toda a gente é alguma coisa: em mim é muitíssimo, é tanto que não lhe posso resistir e deixo-me ir levado. Isto é deplorável, dirá você. Mas é assim, respondo-lhe eu. Fatum. Penso como Proudhon, Michelet, como os ativos: sinto, imagino e sou como o autor da Imitatio Christi. Você é forte porque tudo o puxa nesse sentido. Não se orgulhe da sua força, porque é um fenómeno de temperamento, como a fraqueza de outros. Em ambos, perfeita irresponsabilidade. Simplesmente uma é boa, outra má. Como quer que eu ande, se sou ao mesmo tempo solicitado, com intensidade igual, em dois sentidos contrários? Pensa que renego as nossas grandes verdades, filosóficas e morais? Engana-se. Vejo-as tão bem como nunca.

Simplesmente vejo-as: nada mais. Ora a gente não é segundo o que vê, somente, mas ao mesmo tempo segundo o que sente, segundo a direção para que vai por uma tendência, que é a expressão exata do eu de cada qual. Percebe esta trapalhada? Creio que é imoralíssima. Em todo o caso, moral ou imoral, é isto o que se dá em mim: ora segundo Hegel, tout ce qui est, est raisonnable. Seja como for, o que é certo é que estou neste momento atacado da náusea da realidade. Não sei que tempo durará o ataque. Não é o primeiro: é uma das minhas alternativas, conforme predomina um ou outro dos dois factores da minha vida moral. Peço-lhe que me diga francamente uma coisa: julga-me incurável? Diga, sem receio de me afligir, o que lhe pareecr, porque eu cheguei à impassibilidade interior dos fatalistas. Mas deixemos este aranzel, no qual há a descontar a impressão que atualmente me do-mina, e a frase (um artista nunca se limpa)”.

Quando escreveu esta carta (18-1-1872), Antero atribuía ainda um valor positivo à existência. A Natureza não lhe aparecia como intrinsecamente má e nem sequer como acidentalmente maquiavélica; pelo contrário, continuava confiante na remodelação de uma sociedade indigente de justiça. Pressente-se, porém, a aurora de uma imaginação dolorosa, mas o budismo em que fala, primeiro rebate da desvalorização da vida, não tem ainda consistência doutrinal: é uma espécie de indolência quietista, algo assim que parece semelhar-se à ataraxia sentimental do estoico. Nos anos imediatos, a doença progride, e correlativamente, mormente de 1874 a 1880, opera-se na sua mente uma profunda mutação de ideias. Os sonetos do quarto ciclo (1874-1880) são, como já dissemos, o depoimento desta mutação, a um tempo sentimental e ideológica.

Como escreveu a Oliveira Martins (3-VI-1876), Portugal e o Ocidente surgiam-lhe como sociedades que viviam numa época de decomposição, “uma destas épocas em que a grande crença coletiva se dissolve” e a mente tem de excogitar uma metafísica e “de a procurar sozinho com o suor do seu rosto e a ansiedade do seu coração, para conseguir uma espécie de religião individual, que no fim de contas nunca pode equivaler em firmeza, confiança, serenidade, àquela ampla comunhão espiritual, ideia-sentimento, em que a fraqueza do indivíduo se ampara na potência da colectividade”.

A revolução espanhola de 1868, a Segunda República em França e o alastramento da propaganda e da organização socialista provocavam a curiosidade inquieta, gerando sentimentos de melancólica incerteza e de mal-estar social, que davam alento a todas as tendências eversoras. “... Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa: tal é o fim das Conferências Democráticas”, proclamava o programa das Conferências do Casino (1871), e esta razão sociológica, depressiva pelo desagregar dos vínculos consuetudinários, facilitava um estado de alma onde a dúvida e a negação se insinuavam com brandura.


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