Evolução espiritual de Antero

Em 1885, quando o filósofo se despedia do poeta, preparando para o prelo a sua edição definitiva dos Sonetos., que não será a de um crítico futuro, confidenciou a Faria e Maia a sua posição espiritual e filosófica, aliás em perfeita correlação com os períodos análogos da Carta autobiográfica acima transcritos:

“Vivo aqui, numa terrazinha morta [Vila do Conde], onde não conheço ninguém, com duas crianças que também não conhecem ninguém, além de mim. Esta singularidade de vida não é uma extravagância, mas em parte necessidade imposta pelas condições da doença, em parte como sistema por mim adotado, para ver se chega a um equilíbrio moral, indispensável para qualquer espécie de trabalho. Se por este sistema me não curar então nunca me curo. De resto, tenho um tal sossego interior, que posso dizer que sou feliz, no bom e único verdadeiro sentido da palavra. E um fruto da Filosofia, e quem me diria a mim, quando em Coimbra comecei a cultivá-la, que o que então era para mim só curiosidade da inteligência, viria a ser agora amparo moral, fonte de energia e escudo contra mil e um males! Mas — quem a boa árvore se chega, boa sombra o cobre — diz o rifão, e não sou eu o primeiro, vai já para três mil anos, para quem a Filosofia, começando pela inteligência acaba por entrar no coração, apossando-se dele e da vida toda, como de coisa sua. Não penses, porém, por isto, que acabei em reduzir, como os estoicos dos últimos tempos romanos, toda a Filosofia à moral, com a preocupação exclusiva da direção da vida. Continuo pois especulando, e tenho lido e pensado bastante, possuindo hoje um conjunto definido e ligado de ideias, como quem diz, o meu sistema”.

Aludindo em seguida a algumas ideias deste “sistema”, a cujo sentido se não deve ligar o de explicação total e unitária, mas o de determinação tendencial, continua: “Não posso desenvolver isto: mas para ti, esta simples indicação bastará para que aprecies o ponto de vista em que estou hoje. Quanto às conclusões morais a que por um tal caminho cheguei, já pelos meus Sonetos  (digo alguns deles) pudeste fazer alguma ideia. O que deles me dizes, causou-me satisfação, pois como aquilo é só para poucos e tu és desses, o teu voto não podia deixar de me agradar muito. Entretanto, o meu pensamento ainda ali [sonetos do quarto ciclo] se mostra obscuro e perturbado por outros elementos, sobretudo pelo pessimismo. Tenho, porém, depois daquela data [1881-1882] composto uns quinze ou vinte, onde o fundo do meu pensar e sentir se revela nítido e puro, e onde cheguei a dar expressão poética (e creio que ninguém ainda o tinha feito) ao misticismo científico e positivo, se assim se pode dizer”.

Esta confidência revela claramente a posse de uma posição espiritual que, compreendendo tanto o pessimismo como o otimismo, ultrapassou a valoração subjetiva de um e de outro por uma visão mais larga e meditada, de essência moral, mas com a pretensão de estar de acordo com os resultados do saber científico, da qual alguns sonetos do último ciclo seriam o testemunho.

E foram-no, de facto. Em nenhum, porém, encontro tão nítido o conceito da nova valoração da existência, de “misticismo científico e positivo”, como no soneto Solemnia verba:

Disse ao meu coração: Olha por quantos

Caminhos vãos andámos!

Considera Agora, desta altura fria e austera,

Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!

E noite, onde foi luz de Primavera!

Olha a teus pés o mundo e desespera

Semeador de sombras e quebrantos —!

Porém o coração, feito valente

Na escola da tortura repetida,

E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!

Viver não foi em vão, se é isto a vida,

Nem foi de mais o desengano e a dor.

Este soneto, escrito em Abril de 1884, não brotou do desalento nem da fadiga de viver. Pelo contrário, revela a emancipação da ideologia pessimista e pelo trânsito que estabelece com as Tendência Gerais da Filosofia, considero-o, ideologicamente, como o soneto que exprime a derradeira conceção do Poeta.

Os dois que se lhe sucedem —O Que Diz a Morte e Na Mão de Deus— não são coerentes com o seu ritmo de pensamento e de emoção. Têm uma estrutura pessimista, — um de desvalia da vida, outro, de desilusão e de renúncia. Este, pelo contrário, embora derrame ainda melancolia, transmite sentimentalmente uma atitude prospetiva, e não só afirma um valor positivo, como denuncia um exercício discursivo da razão,

... desta altura fria e austera,

que julgou errado o curso da vida anterior,

... por quantos

Caminhos vãos andámos!

O decurso da sua existência e do seu pensamento surge-lhe como marcha sucessiva de oposições, senão contradições,

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!

E noite, onde foi luz de Primavera!

mas agora, da “altura fria e austera” descobria um horizonte novo, no qual o “coração”

... feito valente

Na escola da tortura repetida,

E no uso do penar tornado crente,

encontrava, como essência da vida, o amor.

 “Se é isto a vida”, isto é, se a compreendeu no seu devir e contradições aparentes, a experiência e a meditação da dor revelaram-lhe o segredo da unidade da existência, e portanto

Viver não foi em vão...

Nem foi de mais o desengano e a dor.

Nesta dialética, o amor reveste a forma de uma explicação monista da vida, e, consequentemente, o seu conceito não se define biologicamente, como instinto genésico, nem platonicamente como apreensão da Beleza que não morre, ou identificação do amante e do amado. É a própria essência metafísica da existência, que se manifesta afetivamente como sentimento de identidade universal e intelectualmente como unidade de aperceção, concentrando e dominando toda a diversidade.

Por esta unidade se realiza uma espécie de inserção do pensamento na vida: a vida não é só caótica e má, só ordenada e boa. É uma e outra coisa, porque esta fenomenologia não é mais do que a manifestação de uma única essência, o amor.

“Du jeune jacobin de 1864 il ne reste guère plus que la peau d'un vieux philosophe, sachant trop bien que la colère, même la colère de ia justice, est encore un reste d'ignorance, et que le monde ne sera définitivement sauvé que par la Raison sceur jumelle de l'Amour”, escreveu em 1884, com espírito espinozista, a Tommazzo Canizzaro, e ao mesmo poeta italiano, no ano seguinte: “Pour nous autres, pauvres poêtes, la névrose est inexorable, si nous ne savons pas lui opposer le plus grand calme de l'imagination et des sens: faut que la force d'IDEALITE absorve toutes les autres et triomphe des nerfs par l'esprit pur”.

Antero conquistou, assim, uma intuição monista da existência, pela qual superou o pessimismo; o Mundo já não lhe aparece como plural, nem dual, como no maniqueísmo da intoxicação pessimista, mas uno na sua essência espiritual, verdadeiramente universo.


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