Evolução espiritual de Antero

Esta genealogia conceptual não diminui o valor poético e filosófico da composição, — uma das “poesias lúgubres” cujos originais Antero destruiu e Oliveira Martins em parte salvou mas propõe um problema árduo e subtil, que só o estudo profundo da psicologia do poeta permitirá esclarecer.

Nas suas Notas sobre os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia de Antero, tão ricas de observações originais e incitantes sugestões, disse António Sérgio que “se não virmos nos Sonetos a nevropatia, torna-se o livro um enigma; se teimarmos em a considerar exclusivamente, praticamos nós uma injustiça”.

E um erro, acrescento, porque a coincidência cronológica da expressão literária do pessimismo com a meditação de Hartmann e da literatura budista, sugere desde logo uma explicação: a introversão, inerente à inspiração lírica, pela qual o móbil inspirador, objeto real, conceptual, ou sentimental, simultaneamente se desnatura e personaliza. A Filosofia do Inconsciente desencadeou, para empregar o vocabulário da psicanálise, a “virulência de complexos” latentes na pré-consciência, e por eles se operou a transposição para a ordem emocional de conceitos e atitudes racionais. Daí a subjetividade, quase direi, a confidência, que impregna os sonetos do quarto ciclo, e que não é autobiografia, nem egolatria, nem narcisismo.

A carta a Oliveira Martins, atrás transcrita, revela claramente a latência de uma constelação de associações emotivas e dolorosas, e a virtualidade de uma inspiração de ritmo pessimista, que aguardava um motivo incitante. “Sinto (1872) o desejo do Nirvana, senão como um grande contemplativo, pelo menos como um doente... Tenho um horror instintivo, e como que inato, a todas as ideias que representam a atividade da vida, como plenitude, finalidade, esperança, e outras deste teor”. A esta luz, o pessimismo de Antero foi uma sublimação não espontânea da experiência pessoal. “Conhece V. Exa. [as composições que perfazem a secção quarta (de 1874 a 80] não preciso comentá-las. Direi somente que esta evolução de sentimento correspondia a uma evolução de pensamento”, confessou Antero a Storck, e este juízo introspetivo mostra que aquela sublimação foi suscitada por uma causa intelectual, cuja acuidade, aliás, está na razão direta do alargamento do horizonte mental. Provocou-a e instruiu-a a leitura, a que o seu espírito aderiu, para depois reelaborar e projetar, como juízo de valor meditado e objetivo, no mundo circundante:

Chamei em volta do meu frio leito

As memórias melhores de outra idade.

Formas vagas, que às noites, com piedade,

Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito.

E disse-lhes:— No mundo imenso e estreito

Valia a pena, acaso, em ansiedade

Ter nascido? dizei-mo com verdade,

 Pobres memórias que eu ao seio estreito..

E cada uma delas, lentamente,

Com um sorriso mórbido, pungente,

Me respondeu:— Não, não valia a pena!

(Consulta)

Este soneto, do ciclo 1874-1880, acusa a plenitude do sentimento pessimista, a que uma aparência de cálculo quantitativo das dores e dos prazeres, “as memórias melhores de outra idade”, dava um colorido racional; mas este pessimismo como que nasceu ferido de morte, porque, além de ser em boa parte produto de intoxicação doutrinal, revestiu essencialmente uma forma reativa contra a sensação de “suspensão da consciência”, que o naturalismo lhe gerara, na confissão da Carta autobiográfica.

Foi uma passagem, e não um estado definitivo, um desvio no curso das ideias e não apenas a réplica de um estado mórbido.

Quer-se melhor prova que a confidência feita a Oliveira Martins em Junho de 1876, na fase aguda da doença, quando iniciava o novo rumo das leituras filosóficas? “O que tenho estado é triste bastante nesta casa onde vim ao mundo não sei para quê — pensamento pouco religioso, bem sei, e contra que reajo, mas que afinal se me impõe em certas ocasiões. É uma fraqueza, que há-de passar; e sendo assim, e nestes limites, a sensibilidade (ou sensiblerie?) tem também a sua utilidade na economia moral do homem”.

A reação contra esta “fraqueza”, acentuou-se no ciclo imediato, de 1880-1884, e não obstante, o homem manteve-se sensivelmente idêntico como paciente e sofredor. É que o seu espírito evolucionou, e evolucionou num sentido que compreendeu e excedeu a visão desvaliosa da existência. Não indica esta evolução que, sobre o estado patológico, evidentemente propício, se implantara com relativa autonomia um sistema de ideias, que foram acolhidas com apreço?

Antero estimava o “livrinho dos Sonetos por acompanhar, como a notação de um diário íntimo e sem mais preocupações do que a exatidão das notas de um diário, as fases sucessivas da minha vida intelectual e sentimental. Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memórias de uma consciência” (Carta autobiográfica).

“Fazer versos foi sempre em mim coisa perfeitamente involuntária”, confessou a Storck na autobiografia, e em carta a T. Cannizzaro (1888): “Mil coisas diria a respeito desta minha última publicação (os Sonetos), se não me repugnasse entrar e alargar-me em considerações sobre as minhas pobres coisas poéticas, que só representam fragmentos dum pensamento que não conseguiu, por um concurso de circunstâncias desfavoráveis, vazar-se nos moldes amplos e novos que concebera. São apenas fragmentos natos e vibrações momentâneas: apenas indicam aqui ou ali a direção em que teria podido fazer alguma coisa profunda e original”.

“Fragmentos de um pensamento”, diz, e tais fragmentos saíram-lhe da pena tocados de inefabilidade, isto é, não definidos nem delimitados nos respetivos contornos. Se o fossem, Antero não teria sido poeta lírico nem os Sonetos seriam poesia, mas somente obra de lavrante mais ou menos artista. Com ser bela a expressão dos sonetos que estamos considerando, não é a pura expressão artística que neles impressiona e domina soberanamente, mas o sentimento de que o Poeta empenhou metafisicamente a sua própria existência e com ela a vivência de uma intuição universal do Ser. São obra de arte e ao mesmo tempo expressão de pensamento que pretende ser afirmação, senão revelação.

Na inspiração de que brotaram, a inquietude filosófica e o sentimento da Beleza confluíram, dando-lhe num só estado, a um tempo psicológico, filosófico e estético; não obstante, a análise crítica é forçada a estabelecer que o conteúdo doutrinal do pensamento foi pensado anteriormente ao próprio estado poético. Daí, os sonetos dos últimos ciclos radicarem no mesmo sentido expositivo que inspirara as Odes Modernas; apesar da diversidade e até contraste do teor mental, o pensamento expressado continua a ser cronologicamente anterior à génese e constituição da própria expressão.

Oliveira Martins falou na ironia como nascente do curso espiritual, deltiforme, de Antero. O grande escritor não errou, e não errou se precisarmos o conceito, isto é, entendendo a ironia não socraticamente nem à maneira de Renan ou de Eça, o mais subtil renaniano português, mas, com F. Schlegel, como um desenrolar de “autocriações e auto-destruições sucessivas”: o símbolo da eterna e sempre precária demanda do espírito metafísico. “A Filosofia é eterna como o pensamento humano: mas porque é eterna. como ele, é que é como ele continuamente instável e flutuante”, disse Antero nos primeiros períodos das Tendências Gerais da Filosofia.


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