Evolução espiritual de Antero

A depressão do sentimento da continuidade social, embora distante do mal du siècle romântico, reforçava a tendência e disposição da mente de Antero para acolher as novidades, e para além de uma e de outra, o rumo das leituras, verdadeiramente uma nova formação, veio dar-lhe, ao invés das afirmações confiantes e prospetivas de Michelet e de Proudhon, consistência ao pessimismo incipiente, tornando-se de pessoal em impessoal, de pendor subjetivo em visão metafísica consistente.

“Quisera eu finir com certas questões transcendentais, que a todo o momento me surgem no meio das coisas concretas e perturbam tudo. Mas talvez que esta seja uma vã aspiração: a metafísica não será sempre o X último, posto além das soluções de todas as equações positivas? Mas, ao menos, determinar a relação desse X com o nosso pensamento e com as coisas cognoscíveis, isso deve ser possível, porque sem isso todo o nosso edifício intelectual, e até moral, ficará suspenso e oscilante como um castelo de nuvens. Eu, por mim, sinto-me incapaz de caminhar direito pela realidade enquanto não tiver, como um espartilho de fino aço, que me sustente, todo um sistema de ideias transcendentais --, e é isto o que me faz muitas vezes parecer estranho e sonambulesco”.

Este trecho epistolar mostra claramente a intenção filosófica das cogitações de Antero na época em que o seu espírito se orientou no sentido pessimista, e esta intenção procedia a um tempo de uma exigência da sua mente e do atrativo da novidade.

Por estes anos, desenvolvia-se em França, em boa parte como reflexo da Alemanha, o interesse pelo pessimismo filosófico, e na Inglaterra, a curiosidade pelo Budismo, aliás inseparável da metafísica pessimista alemã, que foi a mais vigorosa raiz que sustentou este movimento de ideias. Referindo apenas alguns livros que Antero leu e possuiu, hoje existentes em Ponta Delgada, bastará apontar que em 1874 Ribot publicara a monografia notável, La Philosophie de Schopenhauer, e que em 1876 e 1877 se traduziam para francês, respetiva-mente, A Religião do Futuro, em cujo modo de ver Antero “abundou” (1876), e a Filosofia do Inconsciente, de Eduard von Hartmann. As revistas divulgavam ora as conceções e reflexões, ora as excentricidades de Schopenhauer, que por volta de 1880 entrava na língua francesa com as traduções de Burdeau (O Fundamento da Moral) e Cantacuzène (Aforismos sobre a Sabedoria na Vida), para citar somente as traduções que Antero possuiu.

Dentro ainda destes limites cronológicos, o catálogo da livraria de Antero revela a existência de uma bibliografia alemã de história, de exposição e de justificação do pessimismo, na qual sobressaem os livros de Eduard von Hartmann e o de Taubert, Der Pessimismus und seine Gegener (1873), bem como alguns dos livros mais em destaque na literatura sobre o Budismo, designadamente os de Max Müller, de Rhys Davids (Systems Buddhism, 1880, e Buddhist Suttas, 1881) e de Henry S. Olcott (Buddhist Catechism, 1881).

Em grau diverso, todas estas leituras, às quais se deve acrescentar a influição literária de Gérard de Nerval e de Leconte de Lisle, concorreram com ideias e sugestões para a elaboração do pensamento de Antero. Nenhuma, porém, como a obra de Eduard von Hartmann, que decisivamente deslocou a posição do seu espírito, infletindo-o no sentido raciocinadamente pessimista —, e a tal ponto, que pode afirmar-se que durante este período (1876-1882) Antero foi discípulo do filósofo alemão, cujos livros gozavam então de grande voga e anos depois a crítica justamente colocava em plano secundário relativamente a Schopenhauer.

Do genial autor do Mundo como Vontade e como Representação, cuja leitura duvido que Antero tivesse feito nestes anos, colheu apenas, porventura, a interpretação ética do Nirvana, não oferecendo os Sonetos, se bem julgo, o testemunho de uma influência direta e imediata, nem tão-pouco o sentido schopenhaueriano da revolta contra o amor nem o vinco do conceito da Vontade como essência metafísica do Universo.

Antero confessou até a repulsa pelo suicídio individual como processo de libertação, no soneto final do Elogio da Morte (IV):

Talvez seja pecado procurar-te,

Mas não sonhar contigo e adorar-te,

Não-ser, que és o Ser único absoluto.

Este hesitante repúdio tem acento moral: pecado é o termo empregue —, aliás digno de nota, pelo contrassenso que implica, pois se o Mal é coessencial à existência humana, a libertação, do homem ou da espécie, impõe-se como exigência lógica e da ação. Por isso, pode perguntar-se se, para além da repulsa ética, reveladora de uma “censura” ou centro inibitório, não ressoa nesta palavra a crítica de Hartmann, ao julgar ilógica a tese de Schopenhauer, pela impossibilidade de um acontecimento puramente pessoal destruir o Querer, concebido como essência do Mundo.

Se a dor e o mal são produção inexorável e ininterrupta do Universo, cuja essência é monstruosa,

Com um bramir de mar tempestuoso

Que até aos céus arroja os seus cachões,

Através duma luz de exalações

Rodeia-me o Universo monstruoso...

(Voz interior)

como pode o indivíduo, simples fenómeno, conquistar metafisicamente a libertação, a paz íntima e definitiva?

Antero sentiu intimamente a amargura desta pergunta que foi ao mesmo tempo inquietude, e cujo teor contrastava com o progressismo otimista das Odes Modernas e destoava da satisfação de viver então dominante na sociedade portuguesa, rendida confiadamente às delícias da plena segurança, sem entraves ao exercício das liberdades, numa ordem de convivência em que os dirigentes se submetiam aos debates parlamentares e as mentes críticas acatavam o veredicto lógico e, principalmente, o ensinamento imediato dos factos, sem manha nem recriminação metafísica. No pensamento do homem-novo que havia sido, o fim do Homem consistia em se libertar a si e em libertar os outros, pela vontade de viver uma vida mais justa e racionalmente mais coerente; agora, porém, este sentido liberativo já se não apresentava tão harmónico e decisivo, porque a Dor quebrantava, pelo menos, o esforço tendente a implantar o reinado da Justiça na Terra. e propunha a indagação de um sistema de pensamentos adequado à sua realidade física e metafísica.

Foi na Filosofia do Inconsciente, de Hartmann, que Antero encontrou a direção principal e as expressões mais significativas do novo curso das suas ideias.

Para Hartmann, o Inconsciente, “princípio psíquico de existência supra-material”, isto é, uma força e uma inteligência que não tem consciência de si própria, “é a causa de todos os factos de que o indivíduo orgânico e consciente é teatro e fazem supor uma causa psíquica e inconsciente”. Com esta nebulosa e cómoda teoria, que parece antes alargar a esfera da consciência do que fundamentar uma metafísica do Inconsciente, justificava Hartmann não só a ausência da consciência em Deus, “porque se no momento em que o mundo se produziu houvesse em Deus alguma coisa como a consciência, a existência do mundo seria uma imperdoável crueldade e o desenvolvimento do mundo uma inutilidade absurda”, mas ainda a existência no homem de representações e vontades inconscientes, e, na espécie humana, de uma força que providencialmente conduz a Humanidade para um fim independente dos desígnios humanos.


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