Evolução espiritual de Antero

Se o repúdio foi brusco, a cristalização dos novos valores, isto é, a acomodação do espírito ao ritmo interior que eles requeriam, não foi tão repentino que não comporte datas e fases.

Com efeito, pode dizer-se que Antero, em 1862-1863, já não era espiritualmente quem havia sido, mas a sua vida interior nem por isso lograra a densidade moral e a dimensão ideológica do “homem novo”, porquanto se nutre então principalmente de negações.

Emocionalmente, o tema dominante das suas efusões líricas continua a ser o amor, agora menos espiritualizado, mais humano e carnal, personificado, porventura, numa menina sua parenta, e ideologicamente, isto é, no plano das conceções, ainda não se observa a clara e decidida conversão do espírito a um ideal conceptualmente distinto e determinativo de novo comportamento perante a Vida.

Por Abril de 1862 a sua posição era a de um “liberal”, para quem “não é tudo a liberdade, mas é o primeiro passo para que tudo se alcance, é a primeira condição de tudo que é justo e santo”, e ser liberal significava então, principalmente, anticlericalismo e “maldição para os inimigos da liberdade, do progresso, porque esses são também os inimigos de Deus,... embora se escondam atrás do altar, embora tomem a cruz por insígnia”. Meses depois, em Novembro, já não fala, como em Abril, na “mão de Deus levando as nações” porque a imortalidade se lhe afigura uma ilusão e, “fechadas as alturas”, o Mundo já “não se entende” como obra do Criador,

Ventura! aurora doutro eterno dia —

 Amor -- Verdade — Bem — Quanto desprende

Seu voo cá da terra e quanto estende

Asas no céu, só busca esta harmonia,

E as alturas fechadas! tudo esfria

E morre, lá por cima, e não se entende...

Certo é que o fruto só p'ra terra pende,

 Parece que p'ra terra a luz se cria!

(Momentos de tédio, in Raios de Ext. Luz)

e não hesita até em considerar o sacrifício do Calvário uma inutilidade:

A UM CRUCIFIXO

Há mil anos, oh Cristo, ergueste os magros braços,

E clamaste da cruz: “Há Deus”, e olhaste, oh crente,

O horizonte futuro, e viste em tua mente

O alvor do céu banhar de luz esses espaços!

Porque morreu sem eco o eco de teus passos?

E de tua palavra (oh Verbo!) o som fremente?

Morreste! ó dorme em paz; não volvas, que descrente

 Arrojarás de novo à campa os membros lassos!

Há mil anos! há mil! Que é dela a tua esperança?

 Ainda, como então, Amor — traduz — Vingança,

E é o int'resse glacial das almas o sudário!

Ainda, como então, viras o mundo exangue,

E ouvirás perguntar: De que serviu o sangue

 Com que regaste, oh Cristo, as urzes do Calvário?!

A heterodoxia e a blasfémia já não distavam muito desta posição, e com efeito, pouco depois, em 1863, dá sem hesitação o temeroso passo. No Fiat lux (Raios de Ext. Luz), que é uma fantasia cosmogónica, ri da Criação com ironia pesada e fácil, distantíssimo da finura do sentimento do contraste cambiante e da conatural limitação de todas as coisas, ou seja, o humour, faceta refulgente das suas últimas poesias, mas é no soneto Sarcasmos, também dos Raios de Extinta Luz, que a blasfémia atinge a mais nua e agressiva expressão:

SARCASMOS

Está deserta a estrada do Infinito,

É apenas o céu do nada espelho.

A eternidade é fóssil: Deus é velho

E o homem olha o céu de fito em fito!

A cruz de Cristo está feita um palito,

Embrulham-se cominhos no Evangelho;

Cada qual dá a Deus o seu conselho:

Nem já é Verbo o verbo... é só um Dito!

Nada disto me dá a mim cuidado;

 Mas morrer Satanás também de frio.

Mas não haver já mal que se combata

Não poder já ao demo um condenado

 Render a alma imortal... por desfastio

É isto o que me dói, o que me mata!

A partir de então pode realmente dizer-se que se lhe “varrera” do espírito a educação católica e tradicional, e a poesia que exprime plenamente esta atitude interior de desprendimento de um passado recente e anuncia a confiança no verbo redentor da Revolução intitula-se Gargalhadas e tem a data Novembro de 1863:

Tudo vai, se rasga e parte Como em cidade assaltada, Sob esses tufões gelados Da tormenta — Gargalhada!

A gargalhada do santo,

Quem tem nome — fé e crença;

A gargalhada do ímpio,

Que se chama... indiferença;

A gargalhada da história

Que se chama... Revolução;

E a gargalhada de Deus,

Que tem nome... Escuridão.

Ei-las 'hi vêm, as tormentas,

 De todos os horizontes,

.              .              .              .              .              .              .              .              .              .

Desde a França... e são revoltas;

 Da Alemanha... e são ideias;

 Desde a América... e são fardos;

E da Rússia... e são cadeias;

De Inglaterra... e são carvões

De fumo enchendo os portos;

 Do Oriente... e são sonhos

E da Itália... Cristos mortos;

Da Espanha... e são traições,

À noite, por trás dos brejos

Mas basta! A luz doirada Um dia há-de surgir!

E a gargalhada imensa Fechar a horrível boca!

Então!

Alma, que sonhas?

Que louco desvairar!

Então I!... Mas —Hoje— esta hora…

 É toda para chorar!

A “luz doirada, que havia de surgir” irradiaria triunfal da fé reconfortante no Progresso, do sol da Liberdade, e do amor da Humanidade,

Eu não sou dos que a Pátria só adoram,

Como adora o regato a própria serra:

Deus numa gleba apenas não se encerra.


?>
Vamos corrigir esse problema