Evolução espiritual de Antero

Da pena de Antero, no período que estamos considerando, não saiu uma palavra que sugira o regresso à crença em que fora educado. A despedida do Catolicismo, no tempo de Coimbra, foi definitiva, mas nem por isso a sua alma se descristianizou. A sua conceção da existência nada teve de pagão. Nunca concedeu à vida um valor independente, e a eudemonia sempre lhe pareceu monstruosa.

Depois das poesias religiosas que recordam a Harpa do Crente, em 1864, nas Saudades Pagãs (Primaveras Românticas) dissera como que adeus ao Cristianismo, ao evocar o mundo dionisíaco da Hélade:

Havia em tudo uma expressão profunda

Nem era muda a vastidão do mundo.

A “saudade indizível” dos velhos deuses inspirou-lhe, porém, uma despedida somente intelectual, porventura até simplesmente literária, não correspondendo à separação de Cristo o advento de uma sensibilidade paganizada. Foi o adeus à crença da mocidade, isto é, a passagem do absoluto, inerente à credulidade sincera, para um humanismo, que tudo explicava pelo condicionalismo e pela relação.

Durante os anos de desespero, o seu coração foi sensível ao Deus cristão, e na “agonia” interior, no ascetismo, na fraternidade e catolicidade do ideal, na noção de pecado e na essência da virtude e da santidade, reconhece-se a voz de Jesus, íntima e dominadora na sua vida emocional.

Seria ofensivo abordar numa reflexão breve o problema tão complexo e delicado da religiosidade de Antero. Para o objetivo deste ensaio basta a resposta a esta pergunta, a que hoje por vezes se responde com uma espécie de certeza intuitiva e primária: recuperou, após um longo exílio e com os inevitáveis desvios, a crença da juventude, que a crise coimbrã dissipara?

Nada mais distante da alma de Antero, a partir do momento em que se autonomiza, do que o espírito de igreja, a obediência a ritos, a aceitação ingénua de dogmas, isto é, a tradução sociológica ou etnográfica da religião. Sob este aspeto externo, material, pode dizer-se que Antero foi não só a-religioso, mas irreligioso. Porém, se na religiosidade considerarmos o sentimento de dependência e universal solidariedade, e no numinoso, não o tremendo ou o miraculoso, mas o persuasivo da santidade, Antero foi religioso, e tanto que a sua libertação do Naturalismo comporta uma verdadeira experiência mística, embora sem sombra de estados teopáticos.

A atitude budista fora uma fase desta libertação, no sentido de que o conceito da vacuidade da existência, essencialmente dolorosa, solicitava intrinsecamente a negação da vontade de viver, cujo termo moral seria o nirvana. Nesta atitude surpreende-se claramente uma ansiedade de natureza religiosa, isto é, a conquista de um conhecimento de salvação; e a esta luz, pode perguntar-se se o último soneto que fecha o volume, Na Mão de Deus, que tantas almas cândidas rezam e um “monge cristão” subscreveria, como disse Oliveira Martins, não traduz um regresso à fé simples, pelo desencanto de todas as coisas e pela inanidade de todos os valores humanais:

Na mão de Deus, na sua mão direita,

Descansou afinal meu coração.

Do palácio encantado da Ilusão

Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita

 A ignorância infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão

A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,

Que a mãe leva ao colo agasalhada

 E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente!

Este repúdio de todas as inquietações, esta libertação do coração, este sono eterno em Deus, foram uma aspiração sincera. Atingiram, porém, substantividade, isto é, foram além do reconhecimento da transcendência metafísica do Absoluto, apaziguando a mente, consolando o coração e nutrindo a conduta?

Antero escreve no pretérito e termina com um imperativo, mas nem o ritmo do tempo nem a índole do modo exprimem psicologicamente a reversão ou a conversão. Inclinando-se perante uma espécie de sobrenatural moral, faz emergir sobre o fundo cristão da sua alma sentimentos de humildade e o ressentimento contra a vida, como valor autónomo ou instrumental. Transmite-nos renúncias, talvez mesmo um conjunto de negações, mas sob a aparência de urna crença positiva descobre uma apoteose niilista, da qual se não desprende o remorso nem a necessidade íntima da expiação.

Deus surge como o termo destas renúncias, e não como o começo de uma vida nova: é o esquecimento eterno no seio da eternidade divina, e não uma reconquista promissora, ou a conversão numa natureza transmudada.

Perante as atitudes já entrevistas, este soneto, sem o “humorismo transcendente” do soneto A Virgem Santíssima, constitui ideologicamente uma conceção diversa da existência, substancialmente desvaliosa e onde a luta interior para a conquista do eu se torna estéril e inútil.

Para o crítico, nem só a ideação e o ideato interessam: o sentimento do termo do trabalho ideativo, o momento em que o autor se despede de uma obra, considerando-a perfeita, e a situa no conjunto das suas criações, tem psicologicamente valor independente e próprio. Sem querer aflorar uma fundamentação, pode supor-se, dialeticamente, que outro deveria ter sido o lugar deste soneto, e atrevo-me a pensar que a sua colocação no fecho do volume foi um ato de delicada gentileza com os sentimentos devotos da Senhora a quem foi dedicado, — a esposa de Oliveira Martins, o fraterno amigo, editor e prefaciador dos Sonetos.

Na forma como Antero concebeu a posição do indivíduo no conjunto dos seres desenha-se uma atitude religiosa. Le silence de ces espaces infinis m'effraye, poderia ter dito como Pascal, ou como Espinosa, “o poder do homem é limitado, e o poder das coisas externas ultrapassa-me infinitamente”. A sua religiosidade foi deste tipo: em vez de se considerar como centro, o seu coração sentiu a presença de uma comunhão universal, perante a qual o indivíduo era um ponto no infinito, um instante na eternidade.

A conversão, ou se se quiser, a regressão de Antero à crença da adolescência, não tem sombra de realidade, e só a miragem de uma apologética ingénua ou o ardil da confusão sofística a podem propor.

Foi como filósofo que Antero meditou o Cristianismo, e a conceção que do Cristo formou transparece sobretudo do soneto Palavras dum Certo Morto, cujo simbolismo tornou claro numa epístola a T. Cannizzaro (1889):

“Esse pensamento consiste no contraste entre o Cristo, ideia pura da vida, o Cristo princípio e o Cristo personificado, idolatrado e por isso desvirtuado; de modo que a apoteose equivale à morte daquilo mesmo a que se pretendia dar imortalidade.

“A vida (princípio ideal espiritual) não pode ser alguém (uma pessoa, um indivíduo limitado): daí a contradição íntima do Cristianismo, o contraste e a ironia dolorosa das palavras que ponho na boca do Cristo, ao mesmo tempo como uma crítica amarga da loucura idólatra dos homens e um juízo sintético da história do Cristianismo”.

A fé não exprime, pois, a última palavra ou o derradeiro sentimento dos Sonetos, cuja mensagem final foi ditada pelo pensador, e não pelo crente.


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