Evolução espiritual de Antero

O aristocrata de nascença e pelo talento faz-se, então, proletário. Parte para Paris em fins de 1866, trocando a carreira de escritor e o rendimento de uma pequena fortuna, que aliás lhe dera a “consciência da proprietário”, pelo ofício de tipógrafo.

Ao contrário de Michelet, que de tipógrafo se fez escritor, Antero, seu discípulo, de escritor e príncipe da sua geração faz-se tipógrafo, sem dúvida para poder dizer, como o Mestre na dedicatória do Peuple a Edgar Quinet: “Mereço, em mais de um sentido, o verdadeiro nome do homem moderno, o de trabalhador”. O parecer de Michelet, revigorado por demais pelo exemplo de Proudhon, afigura-se-nos a razão profunda da decisão de Antero, na qual, contudo, se não deve ver um teatral gesto imitativo dos dois grandes mestres da sua formação. “Eu por mim, escrevia na véspera da partida, vou mais com o ânimo sossegado de quem cumpre um dever do que com o coração alegre de quem segue uma esperança”.

A crua realidade e a confusão obscura e anónima dos pequenos interesses sem amanhã, em breve o advertiam da leviandade do generoso sonho que sonhara e cuja incitação emocional constitui uma das afirmações mais nobres do século passado, aliás tão pródigo de nobres ações. “Foi uma tentativa malograda, mas honrosa — confessou —, porque foi sincera; só eu sei que por esforços passei, para cumprir o que julgava então o meu dever, quantos sacrifícios! O resultado é este: mas não me queixo, porque tiro um outro moral, e esse grande, a estima de mim mesmo”.

Regressa a Portugal, resolvido a “definitivamente entrar de novo na comunhão dos destinos portugueses”. Traz na alma algumas desilusões desta experiência singular e de coragem moral e atual, e com elas o conhecimento vivido do trabalho moderno, “forjado, pálido e dividido, desnaturado e injusto”, e o reconhecimento das inevitáveis limitações das aspirações ideais. “Tenho chegado (e é impossível não se chegar), escrevia em 1867 a António de Azevedo Castelo Branco, ao conhecimento de que não há no mundo motivo para muito esperar assim como não o há para desesperar inteiramente. Por isso me vou conservando quanto posso a igual distância do contentamento e do abatimento, julgando-os a ambos igualmente perniciosos. Sei hoje que a verdade, a justiça, o belo não existem realmente e de um modo completo senão no espírito do homem, ou como diz Kant, nas categorias da Razão. Os factos do mundo objetivo podem aproximar-se mais ou menos desses tipos ideais, mas assim como nunca chegam a unir-se e confundir-se com eles assim também não chegam nunca a desviar-se inteiramente do círculo de atração deles. B uma questão de mais e menos, uma oscilação dentro dos limites de uma média, cuja distância aos dois pontos extremos, maior e menor, da oscilação, não pode nunca ser extremamente notável. Saindo, por este raciocínio, fora dos pontos de vista do antigo Idealismo, que não concebia senão uma medida exata para a verdade e para o bem, e além desse limite inflexível via tudo miséria e erro, saindo dessa estreita filosofia achamos o mundo incomparavelmente menos dramático, a vida menos nobre, as paixões menos exclusivas, mas também encontramos uma tolerância para com os outros e para com nós mesmos, cujo sossego e quase indiferença nos deixa apreciar melhor a harmonia do Universo na complexidade das tantas mil antíteses de que se compõe. Desta filosofia sai naturalmente uma ética, que se pode em grande parte resumir neste preceito — viver o mais possível da vida contemplativa, o menos possível da vida ativa”.

Antero era demasiado jovem para pôr em prática este ideal de vida teorética, que aliás veio a viver, nos derradeiros anos, em Vila do Conde. A experiência proletária indicara-lhe que a vida oferece várias vertentes, mas uma desilusão, no fulgor da vida, não era suficiente para o conduzir à vida retirada e pensativa. Daí, nova aventura.

Um pouco por acaso, empreende uma viagem à América do Norte. Não se lhe conhece ao certo a motivação, embora não seja de excluir a hipótese de outra experiência social, tendo por objeto o exame da já então formidável organização capitalista americana. Fosse, porém, qual fosse o intuito, em fins de 1869 pisa de novo as ruas de Lisboa, abrindo-se-lhe então com perspetivas incitantes o campo da luta social e política.

Com efeito, a Revolução espanhola iniciada em 1868, os dias da Comuna, da qual o Doutor José Falcão, em escrito retumbante, distinguira o inconfundível sentido de justiça social da incendiária violência da ação, o advento da Terceira República em França, a propaganda socialista e a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, concorriam por vias diversas para provocar no espírito público sentimentos de melancólica incerteza sobre a estabilidade social e para gerar nos mais animosos o anelo da eversão revolucionária. A juventude intelectual, que via em Antero o duca e maestro, não lamentava a prostração da “ordem” perante tão grandes acontecimentos. Pelo contrário, o exemplo forasteiro encorajava-a à ação, e porque a alma destes revolucionários, que também eram estetas, exigia ritmo e harmonia, na destruição, associaram-se para “estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”, numa palavra, para “ligar Portugal ao movimento moderno”.

Do intento, nutrido pelo espírito de conspiração, sempre vivo ao longo do nosso século XIX, que foi o século das suscetibilidades políticas, das intentonas, dos pronunciamentos e das “saldanhadas” de vário estilo e montagem, nasceram as Conferências Democráticas do Casino (1871), nas quais se propuseram alguns problemas que não perderam completamente a atualidade. Antero, principal inspirador, escolheu como tema as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos.

Aceitando o juízo de Renan, no Avenir de la Science, de que “a história é a verdadeira filosofia do século XIX”, e aliás coerente com o que principalmente havia assimilado da filosofia hegeliana, Antero fez nesta conferência a interpretação filosófica da história peninsular posterior à Renascença. Afirmava que a decadência era o resultado do concurso de três causas simultâneas: a transformação do catolicismo pelo concílio de Trento, o estabelecimento do absolutismo real sobre as ruínas das antigas liberdades locais, e o espírito de conquista, no polo oposto ao espírito de trabalho. Pensamento, política e economia colaboraram, pois, solidariamente, e para interromper este longo processo de decadência, que remontava ao século XVI, urgia opor ao catolicismo a consciência livre, ao absolutismo monárquico a federação republicana e ao espírito de conquista a iniciativa no trabalho.

Nunca se ouvira entre nós um requisitório tão violento contra a tradição, nem uma apologia tão raciocinada da revolução. A justificação intelectual da exigência de uma revolução de estrutura, que destruísse os fundamentos teoréticos e morais do existente, era, com efeito, o objetivo capital, e para que os auditores — e os leitores — não tivessem dúvidas, terminou a exposição, que aliás marca uma data na Filosofia da História em Portugal, com a sentença famosa: “o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno”.


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