Evolução espiritual de Antero

Antero deixou-se empolgar por esta metafísica, principalmente por se lhe afigurar a consciência lógica do estado dos conhecimentos científicos e a valoração repensada e atual dos velhos problemas ético--religiosos. Daí, o vinco ostensivo da conceção do Inconsciente, da qual alguns versos revelam a transposição emocional da teoria, como força latente no indivíduo,

Altas horas da noite, o Inconsciente

Sacode-me com força, e acordo em susto

(Elogio da Morte, I)

como princípio do Universo,

Um espírito habita a imensidade:

Uma ânsia cruel de liberdade

Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,

Vozes do mar, da selva, da montanha...

Almas irmãs da minha, almas cativas!

(Redenção)

e como ausência da consciência de si mesmo em Deus, num soneto cujo título é já de per si expressivamente significativo:

O INCONSCIENTE

O espectro familiar que anda comigo,

Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,

Que umas vezes encaro com desgosto

E outras muitas ansioso espreito e sigo,

É um espectro mudo, grave, antigo,

 Que parece a conversas mal disposto.

Antes esse vulto, ascético e composto

 Mil vezes abro a boca... e nada digo.

Só uma vez ousei interrogá-lo:

Quem és (lhe perguntei com grande abalo)

Fantasma a quem odeio e a quem amo?

Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,

 Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos

Mas eu por mim não sei como me chamo...

Perante esta essência-força, insondável nos desígnios, imanente na razão de ser e tenazmente criadora, o suicídio individual ou coletivo, isto é, da espécie humana, era um contrassenso lógico, por ser um simples episódio sem futuro nem significação. Um expediente, e não um remédio, como era a supressão da procriação, sugerida por Schopenhauer. Inerente o mal ao Universo, — Antero é maniqueísta quando fala no “eterno mal, que ruge e desvaria” (Nox), — somente o suicídio cósmico, pela ação providencial do próprio “Inconsciente”, traria a libertação final e definitiva. Se o mundo é uma série convergente de atos de vontade do Inconsciente, não bastará porventura que o Inconsciente cesse de querer o mundo para que este deixe de existir? O dever do consciente é colaborar e apressar o momento da suprema execução, sendo nestas páginas de romance metafísico, apresentadas por Hartmann como alargamento e superação da conceção de Schopenhauer, que o espírito dorido de Antero encontrou transitoriamente uma resposta. Nos dois sonetos Espiritualismo, que condensam na forma mais bela e elevada a metafísica pessimista, o termo final da consciência, “vago protesto da existência”, “flor humilde e misteriosa” e “imaculada”, é concebido como contemporâneo do “imenso funeral” (Lacrimae rerum) do mundo,

Como o último suspiro do Universo.

Não é somente na linha geral, especulativa, que se revela a influência de Hartmann. Encontro-a ainda no indeciso e vago panteísmo, na conceção da existência humana como queda, sem paridade possível com a expulsão do Paraíso e com a reminiscência platónica,

Muito longe daqui, nem eu sei quando,

Nem onde era esse mundo, em que eu vivia

 Mas tão longe... que até dizer podia

Que enquanto lá andei, andei sonhando...

Caí e achei-me, de repente, envolto

Em luta bestial, na arena fera,

Onde um bruto furor bramia solto.

(No Circo)

e ainda na morfologia da ilusão da felicidade.

Segundo a Filosofia do Inconsciente, a consciência esclarecida atingira já a plenitude da deceção, ao reconhecer que a felicidade não é positiva. uma negação que a define —, a ausência da dor, e, consequentemente, só o aniquilamento da dor, isto é, da existência total, importará a libertação definitiva. A universalização a toda a espécie humana deste conceito e desta vontade destrutiva marcará o ponto máximo da colaboração do consciente ao Inconsciente, e com ele se atingirá a última fase preparatória do suicídio cósmico: a vontade humana tornada simultaneamente imolante e vítima.

A extirpação da ilusão da ventura convertia-se, assim, em imperativo, e para mostrar quanto esta ilusão é pura aparência, sem base de consistência, Hartmann fez a respetiva fenomenologia.

Sob três formas reais e possíveis, se manifestou ou pode manifestar esta ilusão: a felicidade é alcançável no presente, ou numa vida futura, depois da morte, ou na Humanidade, como termo do Progresso, — formas que por seu turno geram três juízos reais de desilusão: a existência atual é má, a vida futura, uma quimera, a conquista da ventura pelo progresso da perfectibilidade humana, um sentimento vão e um valor a que deve renunciar-se.

Foi esta morfologia que inspirou a poesia Os Vencidos, na qual três cavaleiros, símbolos destas formas da ilusão, confessam em diálogo amargurado “a derrota traiçoeira e pavorosa” a que os conduziu a miragem de fictícias quimeras. Diz o primeiro “num soluço”:

“Amei e fui amado!

Levou-me uma visão, arrebatado,

Como um carro de luz, pelos espaços!

Irmãos, amei — amei e fui amado...

Por isso vago incerto e fugitivo,

E corre lentamente um sangue esquivo

 Em gotas, de meu peito alanceado.”

Responde-lhe o segundo cavaleiro,

Com sorriso de trágica amargura:

“Amei os homens e sonhei ventura,

Pela justiça heroica, ao mundo inteiro.

Pelo direito, ergui a voz ardente No meio das revoltas homicidas:

Quando há-de vir o dia da justiça?

 Quando há-de vir o dia do resgate?

Traiu-me o gládio em meio do combate

E semeei na areia movediça!

As nações, com sorriso bestial,

Abrem, sem ler, o livro do futuro.

E povo dorme em paz no seu monturo,

Como em leito de púrpura real.

Irmãos, amei os homens e contente

Por eles combati, com mente justa...

Por isso morro à míngua e a areia adusta

Bebe agora meu sangue, ingloriamenee.”

Diz então o terceiro cavaleiro:

“Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo.

Fiz do seu nome fortaleza e escudo

No combate do mundo traiçoeiro.

.              .              .              .              .              .              .              .....

Vacila o Sol e os santos desesperam...

Tédio ressuma a luz dos dias vãos...

Ai dos que juntam com fervor as mãos!

Ai dos que creem! ai dos que inda esperam!

Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...

 Por isso vago sem conforto e incerto, Arrastando entre as urzes do deserto

Um corpo exangue e uma alma moribunda.”

E os três, unindo a voz num ai supremo,

E deixando pender as mãos cansadas

 Sobre as armas inúteis e quebradas,

 Num gesto inerte de abandono extremo,

Sumiram-se na selva impenetrável,

E no palor da noite silenciosa.


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